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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sentimento de culpa e moralidade



As seguintes frases têm um uso ordinário perfeitamente comum.

"Nossa! Agora percebi que o que eu fiz prejudicou meu amigo! Estou me sentindo culpado." "Esse cara é um mau caráter! Ele fez o que fez, sabe que prejudicou meio mundo e não se sente culpado."

Outro dia, me foi dito que o sentimento culpa era uma coisa em si mesma ruim, que não devíamos estimular as crianças a sentirem culpa, que era o produto do dogmatismo da religião judaico-cristã, etc., como se não houvesse nada de positivo a ser dito sobre o sentimento de culpa. Mas, se eu entendi bem o modo como essa tese estava sendo defendida, o que se estava argumentando era que sentir culpa por algumas coisas específicas era algo ruim, com o que eu concordo. Isso se podia ver pelos casos que eram apresentados como exemplos em que o sentimento de culpa era ruim, como o sentir-se culpado porque fez sexo fora do casamento (isto é, sem estar casado - não confundir com traição) e/ou para fins não reprodutivos. Mas é claro que o fato de ser errado sentir-se culpado num tal caso simplesmente não implica que seja errado sentir-se culpado em todos os casos. Mas por que se acredita que é errado sentir culpa num tal caso? Além disso, o que é o sentimento de culpa?

Acredita-se que é errado sentir-se culpado em um tal caso porque acredita-se que é inaceitável o dogma religioso segundo o qual o sexo fora do casamento e/ou para fins não reprodutivos é errado. Ou seja, acredita-se que é errado sentir-se culpado em um tal caso porque não se aceita o dogma religioso que se expressa na forma de uma norma de conduta. Mas isso não implica que aquele que rejeita o dogma não aceita nenhuma norma de conduta. Portanto, não há nenhuma contradição em rejeitar o dogma, achar que é errado sentir-se culpado por agir contra o dogma, e achar que é certo sentir-se culpado por agir contra as normas de conduta que se acredita serem aceitáveis, justificadas. Posso rejeitar o dogma e aceitar a norma que não devemos roubar, por exemplo. Se for assim, posso coerentemente tentar convencer uma pessoa a não se sentir culpada por ter feito sexo para fins não reprodutivos e repreendê-la por não se sentir culpada por roubar dinheiro de alguém.

O sentimento de culpa é um sentimento de reprovação que dirigimos a nós mesmo quando agimos contra uma norma que consideramos correta.[1][2] Essa norma pode ter uma origem religiosa, mas não necessariamente. Por isso, o sentimento de culpa pode estar ligado a uma norma religiosa, mas não necessariamente.

O sentimento de culpa desempenha um papel essencial na vida moral [3]. Em geral acreditamos que, para ter uma atitude moral aceitável, não basta que uma pessoa reconheça que é responsável pelo dano que causou a alguém (na suposição de que esse dano seja um mal). Por que? Porque se ela não se sentir culpada, no sentido descrito acima, isso significa que ela não acha a norma que ela infringiu correta, mas que age conforme a ela por mera conveniência estratégica: para não ser repreendida pelos outros. Significa, portanto, que ela não acredita que o dano que causou seja um mal. Além disso, o sentimento de culpa desempenha o papel que outra pessoa desempenharia (ou poderia desempenhar) se estivesse presente: repreender uma violação de uma norma moral. Ele serve para fornecer alguma garantia de que o agente vai seguir a norma moral, mesmo quando souber que uma violação não vai ser descoberta por outras pessoas. Ao pensar consigo mesmo "Por que não fazes isso? Ninguém vai ficar sabendo?", aquele que desenvolveu a capacidade de sentir culpa vai pensar "É, mas eu ficarei sabendo."[4] O uso da frase "Como você consegue dormir à noite?" é feito justamente quando suspeitamos que alguém não se sente culpado por ter feito algo, ou seja, não sente reprovação pelo que fez. Suspeitamos que a pessoa não se sente perturbada, desconfortável, com o pensamento de ter feito o que fez, mas, no máximo, com o pensamento de ser repreendida pelos outros.

É claro que há patologias psicológicas relacionadas ao sentimento de culpa. Assim como uma pessoa pode sentir dor por uma patologia do sistema nervoso, uma pessoa pode sentir culpa por uma patologia psicológica, não porque tenha feito alguma coisa errada. Mas o fato de existirem tais patologias não implica que o sentimento de culpa seja algo ruim, do mesmo modo como a patologia do sistema nervoso não implica que a dor seja algo ruim. A sensação de dor é algo ruim, mas ela tem uma função positiva: indicar um problema no organismo.

Alguém poderia concordar com minha análise e dizer que não chamaria esse sentimento moral de sentimento de culpa, pois culpa seria uma noção advinda da religião judaico-cristã, etc. Não vou entrar no mérito da questão histórica sobre a origem dessa noção. O fato é que usamos a palavra "culpa" para designar esse sentimento moral, como nas frases do início do texto, sem menção a dogmas religiosos. Portanto, há um uso moral, embora não-religioso, da palavra. Há também um uso jurídico do termo, que nada tem a ver com religião, mas que tampouco designa um sentimento. Mas se uma pessoa não gosta dessa palavra, não vou discutir por palavras.

_________

* Agradeço aos comentários de Flávio Williges, Eros Carvalho, César Schirmer e Laiz Fraga a uma primeira versão desse texto.

[1] Isso pode ocorrer conscientemente, como produto de uma reflexão complexa, ou inconscientemente, como produto de uma educação não refletida.

[2] Há diferença entre culpa, vergonha e arrependimento, pois posso ter vergonha ou estar arrependido sem sentir culpa. Mas não vou entrar nesse ponto aqui.

[3] Para uma excelente análise do papel do sentimento de culpa na moralidade, ver "Freedom and Resentment", de Peter F. Strawson. Meu texto tem forte inspiração nas idéias de Strawson.

[4] Não estou insinuando que todo aquele que sente culpa acompanha esse sentimento com um tal tipo de reflexão. Estou dizendo que quem faz tal tipo de reflexão é porque desenvolveu a capacidade de sentir culpa.

7 comentários:

  1. Prof...
    Se uma pessoa na época do nazismo tem a função de executar pessoas presas, por algum motivo ele não quer mais concretizar a execução e logo em seguida se culpa por não ter feito o que era pra ser feito. Esse é um sentimento de culpa dogmático, mas não necessariamente religioso?

    Ou continua na mesma, culpa somente é algo de dogma religioso.


    Hugo

    Abraços,,
    ps:e o blog está demorando para ler, acho que não é minha net não. o pra avisar mesmo

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  2. Hugo: O sentimento de culpa nunca é dogmático ou não-dogmático. O que é ou não dogmática é a norma cuja violação gera a culpa.

    Eu não disse que culpa é "algo de dogma religioso". muito pelo contrário. Tentei mostrar que a culpa tem uma função positiva que nada tem a ver com dogmas religiosos.

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  3. Em minha opinião, o sentimento de culpa varia ( não muito hoje, com a padronização de comportamento ), mas no decorrer dos tempos de acordo com as necessidades de um indivíduo de se inserir num meio social e amparar-se nele, portanto a própria noção de culpa seria nada mais que uma estratégia psicológica pontual que o ego ( e superego ) desenvolvem para de alguma forma "limpar" os impulsos do id ( já termos freudianos, eu sei que é cafona, perdão ) que são sempre imediatistas e autocentrados. Tal visão, por certo, seria entusiasticamente defendida por NIetzsche, por exemplo, e talvez entusiasticamente rejeitada por Kant, que com seu Imperativo Categórico despersonaliza a moral, colocando-a não como recurso individual de sobrevivência mas como uma espécie de bem público ( e racional ) a ser preservado. Abraços professor

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  4. Henrique: Não sei se te acompanhei em todo teu comentário. Minha postagem não é uma teoria empírica sobre a culpa, mas um comentário sobre o seu papel na nossa vida moral.

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  5. A culpa é sinal de que ainda não estamos perdidos.

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  6. A culpa vem após uma ação (ou inação). Se a sentimos é porque não estamos moralmente perdidos.

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