Translate

sábado, 3 de janeiro de 2015

Clarificar e teorizar

Há ao menos dois pontos de vistas diferentes a partir dos quais se pode estar em uma relação cognitiva com a linguagem: o ponto de vista interno, ou da significação e compreensão, e o ponto de vista externo, ou da teorização.

O ponto de vista externo é o ponto de vista teórico-cognitivo, daquele que constrói teorias para explicar a linguagem de modo geral, tratando-a como um fenômeno natural entre outros. Desse ponto de vista, o objetivo principal é responder perguntas sobre a linguagem que só podem ser respondidas com a obtenção de novos conhecimentos sobre a linguagem, de tal forma que, para isso, não basta tornar mais claro ou explícito o que já sabemos sobre ela. Desse ponto de vista, não é necessário ter qualquer competência no uso da linguagem sobre a qual se teoriza.

O ponto de vista interno é o ponto de vista daquele que já tem uma determinada competência no uso de uma linguagem particular, que certamente inclui saber fazer certas coisas de acordo com certas regras para dizer certas coisas com sentido e para compreender quando outros as dizem. Desse ponto de vista, as perguntas que fazemos sobre a linguagem são respondidas por meio de um exame do que já sabemos como usuários competentes da linguagem que usamos para formular tais perguntas. Não precisamos obter novos conhecimentos, mas simplesmente tornar mais claro o que já sabemos, tanto os elementos desses conhecimentos quanto suas relações entre si. Um perfeito conjunto de exemplos desse tipo de perguntas é o conjunto das perguntas que justamente pedem clarificação, elucidação: Qual é sintaxe lógica de "A baleia é um mamífero"? Qual é a análise semântica de "Eu estou aqui"? Qual é a pragmática de nos permite inferir "Fulano está sendo aguardado" de "Fulano ainda não chegou"? Para responder a essas perguntas, o que devemos fazer é tornar explícitas aquelas regras que já sabemos seguir com competência ao usar as frases citadas. Não precisamos de uma teoria explicativa por meio da qual obtemos novos conhecimentos.

É claro que podemos pensar a explicitação do que implicitamente já sabemos como uma espécie de atividade teórica, num sentido amplo de "teoria". Também podemos pensar na formulação explícita do que implicitamente sabemos como a obtenção de novos conhecimentos. Mas o ponto principal da distinção esboçada acima é que o conhecimento obtido com tal explicitação, se assim podemos falar, é essencialmente distinto daquele que obtemos por meio de teorias explicativas do primeiro tipo, justamente na medida em que o conhecimento obtido por meio de teorias explicativas do primeiro tipo não pode ser obtido apenas por meio da explicitação do que implicitamente já sabemos. Ninguém sabe que a linguagem é ou não é um mecanismo de adaptação evolutiva, por exemplo, apenas tornando explícito o que implicitamente já sabemos.

Alguém poderia pensar, e muitos pensaram, que podemos responder as perguntas que fazemos do ponto de vista da significação/compreensão podem ser respondidas por meio de teorias explicativas construídas do ponto de vista da teorização. Mas isso implicaria que poderíamos ser usuários competentes da linguagem e não saber, nem mesmo implicitamente, que regras seguimos ao usá-la, pois as teorias explicativas construídas do ponto de vista da teorização visam produzir novos conhecimentos, conhecimentos que ainda não temos, nem mesmo implicitamente. A regras que seguimos ao usar a linguagem seriam, então, como leis naturais, que são efetivas independentemente do nosso conhecimento, implícito ou explícito. A normatividade do uso da linguagem, o fato de esse uso poder ser correto ou incorreto em relação a certas regras, deveria, portanto, se explicada de forma naturalista, isto é, por meio de uma teoria explicativa produzida do ponto de vista da teorização.

Todavia, como explicar, dessa perspectiva, a diferença entre seguir uma regra e agir de acordo com ela? Agir de acordo com uma regra não parece ser uma condição suficiente para seguir essa regra. Uma pessoa pode agir de acordo com uma regra por puro acidente. É necessário a pessoa tenha a intenção de seguir a regra para a estar seguindo.Mas como ela pode ter a intenção de estar seguindo uma regra que nem mesmo implicitamente ela conhece?

Além desse problema, essa concepção de regra implica a possibilidade do erro maciço e essa possibilidade é incompatível com o nosso único critério para a posse de um conceito expresso por uma expressão lingüística: a competência no uso dessa expressão.[1]

Há ao menos alguns problemas filosóficos, para se dizer o mínimo, que somente podem ser formulados e resolvidos do ponto de vista da compreensão. Um conjunto de exemplos paradigmáticos são os problemas filosóficos acerca da verdade.

____________

[1] Defendo isso no meu "Conhecimento, verdade e significado".


Nenhum comentário:

Postar um comentário