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terça-feira, 23 de junho de 2015

Brilho eterno de uma mente sem lembrança (Eternal sunshine of a spotless mind)

"Quão felizes são as virgens imaculadas!
O mundo esquecendo, esquecido pelo mundo.
Brilho eterno de uma mente sem mácula!
Cada prece aceita, e cada desejo renunciado."
Alexandre Pope, Eloisa to Abelard

Este é o sétimo texto de uma série que estou escrevendo para uma disciplina da Graduação em Filosofia da UFPR denominada Filosofia e Cinema, em que procuro exercitar a reflexão acerca dos problemas filosóficos por meio de filmes. Creio que filmes podem ser bons meios de apresentação de problemas filosóficos na medida em que apresentam situações que desafiam nossas crenças fundamentais e, assim, desencadeiam a reflexão filosófica. Os textos dessa série são destinados àqueles que já assistiram os respectivos filmes, pois contêm revelações sobre seus respectivos enredos.

Brilho eterno de uma mente sem lembrança conta a história de um casal de namorados, Clementine (Kate Winslet) e Joel (Jim Carrey), que começa a ter dificuldades de relacionamento e a sofrer por causa disso.[1] Em certo ponto, Clementine toma uma decisão: esquecer Joel. Mas não se trata do sentido corriqueiro de "esquecer" alguém que usamos em frases como "Hoje já não sofro mais, pois já esqueci a fulana". Esse sentido corriqueiro não é o sentido literal de "esquecer". Não se trata de não lembrar-se mais da pessoa. Se fosse o sentido literal, "já esqueci a fulana" seria uma contradição performativa, pois enunciar essa frase seria, ao mesmo tempo, expressão de uma lembrança que a pessoa tem da fulana e o ato de dizer que não lembra dela. Clementine queria esquecer Joel no sentido literal de "esquecer". Ela queria apagá-lo da sua memória por causa do sofrimento que a relação com ele estava lhe causando, como quem acaba com uma dor de cabeça tomando um analgésico. Ela queria extirpá-lo da sua vida e recomeça-la como se nunca o tivesse conhecido. Ela atinge esse objetivo por meio de uma companhia que oferece justamente isso: apagar memórias por meio de uma máquina, que causa pequenas lesões localizadas no cérebro.

O que há de filosoficamente interessante nessa história? Ela desafia nossas crenças básicas sobre as seguintes coisas: a relação entre memória e identidade pessoal (de um modo um pouco diferente em que essa relação foi abordada no texto sobre o filme Amnésia) e o direito que temos de esquecer coisas. A solução que Clementine dá para o seu sofrimento é repetida por Joel e já tinha sido usada por Mary (Kirsten Dunst). Essa solução é considerada, por esses mesmos que se serviram dela, como algo ruim, errado, depois que descobrem que se serviram dela. Mas antes dessa descoberta, quando estavam sofrendo, a consideraram a melhor solução para o seu sofrimento. Ela é a melhor solução? Se não, o que há de errado com ela?

Por um lado, parece perfeitamente razoável querer se livrar de um grande sofrimento psicológico, de uma grande dor psicológica, que a lembrança de uma determinada experiência nos causa, assim como parece razoável querer se livrar de uma grande dor física por meio de analgésicos e anestesias. O que poderia haver de bom na dor em si? É claro que a dor física tem a função de sintoma de uma condição anômala do organismo, que deve ser tratada. Ela aponta para a existência dessa condição anômala que é a causa da dor. Pessoas incapazes de sentirem dor por conta de um defeito no organismo correm riscos que as pessoas que sentem dor não correm. Mas uma vez detectada a anomalia através da dor, podemos combater o sintoma com analgésico e anestesia. É como apagar uma notificação em um computador: uma vez que a percebemos, ela não tem mais função alguma. Portanto, analogamente, o que há de errado em apagar uma lembrança dolorosa? Dor, em si mesma, é algo ruim, não? O que há de mal em querer acabar com ela?

Uma distinção aqui é importante: uma coisa é a lembrança que causa dor, outra coisa é a própria dor. É claro que acabar com a lembrança que causa a dor tem como efeito acabar coma dor, se ela for a sua única causa. Mas a dor causada por uma lembrança está relacionada a muitos outros estados processos mentais. Por exemplo: a dor da perda de alguém que morreu está relacionada ao nosso desejo de que essa pessoa continue viva, ao quão acostumados estamos com sua presença na nossa vida. O tempo faz essa dor diminuir porque nos faz acostumar, ao menos um pouco mais, com a ausência dessas pessoa. Portanto, livrar-se da lembrança dolorosa não é o único meio de acabar com ou diminuir a dor que ela causa, pois ela não causa essa dor sozinha. Sim, mas mesmo a lembrança não sendo uma causa suficiente da dor, ela é uma causa necessária, de tal forma que se nos livramos da lembrança, nos livramos da dor. Portanto, embora não seja o único meio de nos livrarmos da dor, é um meio. O que há de errado com esse meio?

Há uma diferença fundamental entre as causas da dor física e as causas da dor psicológica. As causas da dor física não constituem a pessoa que somos. Um cálculo renal, por exemplo, não constitui a pessoa que o possui, embora as experiências que alguém vive por ter um cálculo renal possam constituir a pessoa que ela é. As causa de uma dor psicológica, por outro lado, parecem constituir a pessoa que somos, na medida em que a pessoa que somos é constituída, ao menos em parte, pelas experiências e lembranças que temos, bem como pelos esquecimentos que naturalmente nos ocorrem e toda sorte de estados e processos causalmente conectadas a essas experiências, lembranças e esquecimentos, tais como atitudes proporcionais, sentimentos, associações e disposições, por exemplo. Não parece fazer sentido tentar caracterizar a pessoa que somos independentemente das nossas experiências, lembranças e esquecimentos.[2] Se isso está correto, então deliberadamente apagar memórias implica deliberadamente mudar quem se é. Depois de apagadas, continuamos sendo a mesma pessoa, no sentido numérico de "mesma", mas não somos mais a mesma, pessoa no sentido qualitativo do termo.

Mas qual é o problema em querer mudar a pessoa que se é? Afinal, querer ser uma pessoa melhor não é querer mudar a pessoa que se é? Ocorre que, em primeiro lugar, querer apagar memórias implica que se está descontente com a pessoa que se é, enquanto formada pelas experiências e lembranças que se tem,  entre outras coisas. Alguém poderia dizer que se está descontente apenas com a dor que se sente, nada mais. Mas a dor, como vimos, tem várias causas. Escolher apagar a memória que concorre com outras causas para gerar a dor é escolher eliminar uma das causas da dor. É a memória que se escolheu eliminar, não qualquer um dos demais estados de processos que, junto com a memória, causam a dor. Uma pessoa com fobia por baratas, por exemplo, pode querer eliminar todas as batatas do mundo para não sentir mais essa fobia, ou ela pode tratar as causas psicológicas da fobia. Da mesma forma, uma pessoa que sofre muito com a lembrança de certas experiências poderia tentar modificar outros estados e processos mentais que concorrem para gerar o sofrimento, em vez de apagar a memória. Se a pessoa decide apagar a memória, então parece que ela dá menos importância para a memória dessa experiência do que para esses demais estados e processos mentais.

Mas qual importância pode ter a memória de uma experiência dolorosa? Ela pode ter um papel pedagógico na nossa vida, se soubermos lidar com ela de maneira apropriada. Podemos aprender a viver melhor, a sermos pessoas melhores, com base no modo como lidamos com as experiências dolorosas. Eliminar a memória de uma experiência dolorosa, no filme, (e esse é o segundo ponto relativo ao argumento baseado no desejo de querer ser melhor) não tem como objetivo nos tornar melhores. Parece que mudar o modo como Clementine lida com a memória da experiência dolorosa é muito mais promissor, no que respeita a ela se tornar uma pessoa melhor, a capacitá-la a viver melhor, do eliminar a memória dolorosa. Apagar a memória parece ser análogo a tomar remédios para combater os sintomas de uma doença, sem atacar as causas dessa doença. Imagine se generalizamos esse procedimento? Provavelmente morreríamos de alguma doença mais cedo, se atacássemos apenas os seus sintomas, do que se procurássemos e atacássemos as causas desses sintomas. Analogamente, nossa capacidade para aprendermos a viver melhor, a sermos pessoas melhores, seria seriamente afetada, se apagássemos todas as memórias dolorosas que tivéssemos. Isso parece se chocar com o que parece dizer Nietzsche através da frase citada por Mary em um dialogo com Howard, seu chefe e ex-amante: “Abençoados sejam os esquecidos, porque tiram proveito até mesmo de seus próprios erros”. Como alguém pode tirar proveito de um erro que esqueceu? Mas o desejo de quem quer apagar as memórias ruins está mais de acordo com o espírito da segunda citação de Mary no mesmo diálogo (de onde o título do filme é retirado), um trecho do poema Eloisa to Abelard, de Alexandre Pope:
Quão felizes são as virgens imaculadas!
O mundo esquecendo, esquecido pelo mundo.
Brilho eterno de uma mente sem mácula!
Cada prece aceita, e cada desejo renunciado.[3]
Creio que "imaculada" traduz melhor a palavra "spotless", que definitivamente não é sinônimo de "sem lembrança". Tanto o poema quanto o filme falam sobre uma mente sem lembranças ruins, que são um tipo de mácula. Mas querer apagar memórias ruins tem uma consequência ética: implica renunciar a ao menos parte da nossa capacidade para aprendermos a nos tornarmos pessoas melhores, da nossa capacidade para aprendermos a viver melhor. 

Mas o que parece ser o problema mais grave de se querer apagar memórias ruins do modo como é feito no filme é uma outra consequência ética. Apagar memórias ruins não afeta apenas a pessoa que assim o faz, mas também as pessoas que convivem com ela, especialmente as mais íntimas. Todos são obrigados de se adaptar à nova condição daquele que se submeteu a esse tipo de processo, para que ele seja bem sucedido. Talvez sejam obrigados a mentir ou a passar por outros embaraços éticos. Todos são obrigados a aprender a lidar com uma nova pessoa. Mas há uma consequência ainda mais grave. Não se trata de apenas apagar certas lembranças ruins, trata-se de apagar uma pessoa da nossa mente, da nossa vida! Imagine o fardo psicológico de uma pessoa que sofre um tal banimento. Além de todo o sofrimento que a relação estava causando, a pessoa sofre ainda mais por ser descartado como um brinquedo que, embora antes fosse divertido, depois que quebrou e se tornou chato, é jogado fora... Esse parece um claro exemplo em que se trata uma pessoa como meio, não como fim. Um outro exemplo é o modo como Patrick (Elijah Wood) trata Clementine, se aproveitando de toda a informação que ela desejou tanto esquecer...


_________

[1] Há alguns anos atrás, tive uma discussão com meu amigo Jonadas Techio sobre esse filme. Naquela ocasião, eu me limitei a testar a posição do que, no presente texto, é interlocutor imaginário a quem atribuo as objeções ao que eu digo. Não lembro o quanto o que digo aqui, no final das contas, se aproxima  que Jonadas defendeu naquela discussão.

[2] No texto sobre Amnésia, vimos que a capacidade de fazer novas memórias sobre as experiência que vive parece ser condição necessária para a unidade de uma pessoa que vive essas experiências. Aqui não se trata de um problema gerado pela falta de capacidade de fazer novas memórias, mas pelo ato deliberado de apagar algumas memórias já feitas. Ambos os problemas, no entanto, estão baseados na conexão entre memória e identidade pessoal.

[3] “How happy is the blameless vestal’s lot!
The world forgetting, by the world forgot.
Eternal sunshine of the spotless mind!
Each pray’r accepted, and each wish resign’d.”


2 comentários:

  1. Adorei seu trabalho e fiquei feliz em saber que é estudante da federal paranaense. Abraço!

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    1. Obrigado, mas sou professor do Departamento de Filosofia da UFPR.

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