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sábado, 22 de outubro de 2016

Uma paisagem filosófica sem torres de marfim: ou sobre como a filosofia é útil para o cidadão comum e, portanto, para a sociedade

O Pensador, de Rodin, é impressionante
porque expressa, por meio da tensão do corpo
do pensador, o esforço exigido para
se pensar com rigor e critério.

O que é ser útil? Algo é inútil ou útil sempre em relação a um objetivo. Algo pode ser inútil para um objetivo e útil para outro. E existem os mais variados tipos de objetivos, que podem ser combinar de muitos modos diferentes dentro de um sem número de possíveis planos: objetivos morais, cognitivos, estéticos, religiosos, instrumentais, biológicos, psicológicos, econômicos, educacionais, sociais, etc.

A dificuldade de se avaliar a utilidade da filosofia é diretamente proporcional à dificuldade de se determinar os objetivos pelos quais fazemos filosofia e, antes disso, o que é fazer filosofia. Eu não vou tentar responder à pergunta "O que é filosofia?" aqui. Esboço uma resposta na postagem O que é filosofia?, publicada em duas partes: parte 1; parte 2. O que defendo lá é que a filosofia é uma atividade de lidar com problemas relativos às nossas crenças e conceitos fundamentais.[1] Por meio de uma reflexão acerca do que sabemos ou julgamos saber (o que inclui os conhecimentos científicos), os filósofos procuram esclarecer o conteúdo de nossos conceitos e crenças fundamentais, motivados principalmente pela percepção de aparentes conflitos ou incompatibilidades entre tais crenças, ou por casos que parecem ser contra-exemplos delas. Tais conceitos e crenças fundamentais são as bases sobre as quais pensamos o mundo e orientamos nossas ações nele. O sucesso de tais ações depende do modo como a orientamos a partir do modo como pensamos o mundo e nossas ações nele. Em outras palavras, a qualidade do modo como pensamos o mundo e nossas ações nele determina o sucesso dessas ações. A importância ou utilidade da filosofia, entendida do modo como descrevi acima, advém primeiramente do fato de ela proporcionar, ou tentar proporcionar, uma clareza reflexiva sobre as virtudes e defeitos dessa base conceitual e doxástica sobre a qual pensamos e agimos sobre o mundo. Através da prática de filosofar, exercitamos a arte de pensar com mais rigor e critério sobre o que é muito básico para nossos próprios pensamentos e nossas ações, sejam pensamentos sobre o mundo natural, sobre coisas abstratas, pensamentos estéticos, morais, religiosos, sobre a sociedade a política, etc. A filosofia é importante não apenas porque é útil. Ela também é, para quem a pratica, uma atividade intrinsecamente prazeirosa.

Sustento que a importância ou utilidade da disciplina de filosofia nos currículos do ensino médio e mesmo fundamental é exatamente a mesma da própria filosofia, desde que ela seja lecionada como uma introdução ao filosofar. Os estudantes, nessa disciplina, deveriam ser introduzido a uma seleção de problemas filosóficos e de algumas das principais maneiras de se lidar com esses problemas. De preferência essa introdução deveria ser feita através de aulas socráticas, que consistem em uma reflexão coletiva guiada por perguntas que estimulem os estudantes a pensarem sobre seus conceitos e crença fundamentais. A história da filosofia pode ter um papel nessas aulas, desde que seja encarada como a história dos debates sobre os problemas filosóficos e as tentativas de se lidar com eles. Creio que aulas demasiadamente focadas no resultado do filosofar, as doutrinas ou teorias, negligenciando o seu processo, a reflexão sobre os problemas filosóficos, apresentam a filosofia de maneira enganadoramente estática e livresca, pois esconde seu aspecto prático. Filosofia (assim como a ciência) é uma atividade! Os resultados dessa atividade são parte dela, sem dúvida. Mas ensinar a filosofar é ensinar a lidar com problemas filosóficos, não é tornar o estudante erudito sobre os resultados dessa atividade cristalizados em livros.

Filosofar não é algo que apenas filósofos profissionais podem fazer. Os filósofos profissionais, é claro, são especialistas nessa atividade e o nível de profundidade e discussão entre eles é bem maior do que entre não-especialistas. Mas isso não é justificativa para trancar a filosofia em uma torre de marfim, longe do alcance do público não especializado. Crianças podem filosofar! E elas filosofam naturalmente, pois na tentativa de entender os conceitos que estão adquirindo, fazem perguntas que, mesmo sem termos respostas adequadas, as dissuadimos de perguntar.

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[1] Um conceito é tão fundamental quanto for a dependência que nossa forma de vida tiver de sua posse. Tente pensar como seria nossa forma de vida se não tivéssemos conceitos estéticos, por exemplo. Uma crença é tão fundamental quanto for a quantidade de crenças cuja verdade depende da verdade dessa crença. Pense em quantas crenças seriam falsas se fosse falsa a crença de que o somos livres, por exemplo.

2 comentários:

  1. Olá, Alexandre

    Primeiramente excelente texto sobre a utilidade da filosofia e como ela deve ser aplicada na escola. Fez-me ter alguns insights importantes para a minha futura carreira dentro da filosofia.
    Gostaria de saber de ti se acreditas que a filosofia tem alcançado o seu objetivo útil de lidar com conceitos e crenças fundamentais a nós: ao longo dos milhares de anos da filosofia, ela tem conseguido clarear (e resolver, quem sabe) mais os nossos conceitos e crenças fundamentais ou ela anda em círculos? Não vou entrar no mérito dela ser uma atividade prazerosa, pois isso fica inteiramente a cargo de quem a escolhe. Nós nos engajamos prazerosamente em atividades circulares como, por exemplo, colecionar selos de cartas e placas de carros.

    Grande abraço.

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    Respostas
    1. Obrigado! O que vc entende por "andar em círculos"? Eu acredito que já obtivemos muita clareza graças a trabalho de muitos filósofos. Mas a clareza em muitos casos consiste em perceber mais claramente a complexidade de um problema, por oposição a resolver esse problema.

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