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quarta-feira, 29 de março de 2023

Disciplinas filosóficas


A investigação filosófica se divide em várias disciplinas que focam em distintos conjuntos de problemas filosóficos. E volta e meia surgem novas disciplinas que lidam com novos problemas filosóficos tal com a filosofia do filme, por exemplo. Entretanto, há umas poucas disciplinas principais, que lidam com tipos de problemas que perpassam as demais disciplinas. Estas são a metafísica, a epistemologia e a filosofia da linguagem. Em todas as demais disciplinas filosóficas haverão problemas desses três tipos: metafísicos, epistemológicos e linguísticos. Mas há outras disciplinas que merecem destaque por causa da importância dos seus tópicos: a ética, a filosofia política, a estética, a filosofia da mente, a filosofia da ciência e a filosofia da religião. Na verdade, muitas dessas disciplinas mantém zonas de interseção em que certos problemas filosóficos pertencem a mais de uma delas. Esse texto se dedica a uma brevíssima apresentação esquemática daquelas três primeiras disciplinas.


Metafísica

O termo "Metafísica" foi cunhado por Andrônico de Rodes (c. 60 a.C.) para dar nome a um conjunto de livros de Aristóteles. Andrônico estava organizando os livros de Aristóteles e acreditou, por causa da afinidade do assunto, que aquele conjunto particular de livros sem título deveria ser lido depois do livro intitulado "Física", no qual Aristóteles apresenta sua teoria física. Por isso ele nomeou esse conjunto de livros "Metafísica", ou seja, depois da (meta) Física. Depois disso, a disciplina que trata do tipo de problemas filosóficos com os quais Aristóteles lidou nesse conjunto de livros passou a se chamar "Metafísica". Portanto, ao contrário do que muitos pensam, a metafísica ganhou esse nome não porque lida exclusivamente com coisas que não são físicas, que estão "para além da física". Mas qual é a natureza dos problemas com os quais Aristóteles lidou na Metafísica

A metafísica lida com dois problemas principais: (1) O que existe? (2) Qual é a natureza do que existe? Problemas mais específicos do primeiro tipo são, por exemplo: O mundo exterior (à mente) existe? As entidades postuladas pelas teorias científicas, as entidades teóricas, existem? Existem apenas entidades físicas? Mentes existem? Números existem? Existem entidades lógicas? Existem proposições? Existem entidades abstratas? Existem entidades fictícias? Existem mundos possíveis diferentes do atual? Existem propriedades morais? Existem propriedades estéticas? Existem fatos normativos? Além de indivíduos, existem coisas universais, como propriedades? Existem direitos? Existem relações causais? Existe uma primeira causa de tudo? Deus existe? Toda existência é contingente, ou há coisas cuja existência é necessária? Etc. 

Alguém poderia dizer: "Mas não é óbvio que existem números? Não dizemos, por exemplo, que existe um número que é maior que 2 e menor que 4? E isso não é verdade?" Sim dizemos coisas desse tipo e isso que dizemos é verdade. Mas aparentemente os números são diferentes dos numerais, que são palavras, pois embora os numerais "3" e "III" sejam distintos, 3 e III são o mesmo número. Mas se números não são os numerais, o que eles são? Que tipo de coisas os numerais nomeiam, se nomeiam alguma coisa? Trata-se de uma entidade mental? Ou trata-se de uma entidade abstrata, ou seja, uma entidade que não é nem espacial, nem temporal? Ou não existem números e os numerais são apenas símbolos manipulados de acordo com certas regras. Essas perguntas são sobre a natureza do número. Geralmente perguntas da forma "O que é X?" são perguntas sobre a natureza de um certo tipo de coisa. O que elas pedem, idealmente, é uma definição desse tipo de coisa e uma definição é, idealmente, um conjunto de condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para algo ser desse tipo de coisas. Esse conjunto de condições é tradicionalmente chamado de essência ou ser, além de natureza. A definição, portanto, é a formulação linguística que apresenta a essência, ou natureza ou ser de uma coisa. Por exemplo: a definição de "circunferência" é: "circunferência é uma figura fechada cujos pontos equidistam de um mesmo ponto. Outro exemplo: "água é uma substância formada de moléculas que contêm dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio". [1]

Uma questão metafísica importante é justamente se todas as coisas ou ao menos algumas possuem essências. Outra questão é se as essências são ou não objetivas, isto é, independentes da nossa existência e de nosso modo de pensá-las e conhecê-las.

Antes de investigar se isso ou aquilo existe, temos que definir aquilo cuja existência está em questão (ou dar uma descrição da coisa que mais se aproxime de uma definição). Até mesmo um ateu, aquele que nega a existência de Deus, deve definir "Deus", para ficar determinado e claro o que ele está negando que exista. Por isso, devemos perguntar o que são cada uma daquelas coisas cuja existência está em questão nos exemplos acima. 

Mas uma outra coisa deve ser feita antes de se investigar se isso ou aquilo existe: determinar o que é para uma coisa existir. O que é a existência? Ela é algum tipo de propriedade? Há critérios gerais para se dizer que algo existe? Alguns filósofos sustentaram que a existência não é uma propriedade de indivíduos, mas de conceitos. Dizer que existem cavalos, por exemplo, é dizer que a extensão do conceito de cavalo, o conjuntos de cavalos, tem elementos. Nesse caso, uma proposição sobre a existência de uma pessoa, por exemplo, de alguma forma deve ser reduzida a uma proposição que diz que a extensão de uma certa descrição tem um elemento. Essa descrição seria uma que seria verdadeira de apenas um indivíduo e seu conteúdo seria o conteúdo dos nomes. Mas isso parece implausível. A que descrição desse tipo um nome próprio pode ser reduzido? Saul Kripke tem três argumentos contra essa redução.

Quine sustentou que o critério geral da existência é este: se proposições existenciais verdadeiras não são elimináveis por meio de uma análise lógica, então aquilo que elas afirmam existir existe. Por exemplo: podemos dizer "Existem 12 deuses olímpicos". Mas essa proposição pode ser analisada assim "Os gregos acreditavam na existência de 12 deuses olímpicos". Portanto, mesmo que tomemos a primeira frase como verdadeira, isso não nos compromete com a existência de deuses olímpicos.

Uma outra questão metafísica importante é sobre a possibilidade da existência de certas coisas. Um mundo com leis naturais diferentes das leis naturais do mundo atual é possível? Alguns experimentos mentais usados em filosofia, ou seja, descrições de certas situações que parecem relevantes para a discussão sobre determinados problemas filosóficos, eventualmente geram questões sobre possibilidade. É possível, como sugere Putnam, mesmo que uma cérebro possa ser mantido vivo em uma cuba e ligado a um supercomputador de tal modo que a troca de impulsos elétricos entre o cérebro e o computador resulte em uma experiência qualitativamente indistinguível da experiência que temos do mundos exterior à mente?

Questões metafísicas surgem em outras disciplinas filosóficas, como veremos no caso da epistemologia e da filosofia da linguagem. As questões "O que é o conhecimento?" e "O que é a linguagem?", por exemplo, são questões sobre a essência dessas coisas. A questão "Existe proposições?" é uma questão sobre a existência de certas entidades supostamente ligadas ao funcionamento da linguagem.


Epistemologia

Uma vez determinado o que as coisas são e que tipos de coisas existem ou ao menos podem existir, podemos perguntar se conhecemos essas coisas e como as conhecemos. Essas perguntas pertencem à epistemologia, aquela disciplina filosófica que lida com problemas filosóficos relativos ao conhecimento. Todavia, um dos principais problemas filosóficos da epistemologia é um problema metafísico, sobre a natureza ou essência do conhecimento: o que é conhecimento?

Tradicionalmente o conhecimento é definido como crença verdadeira justificada, também chamada de definição tripartite. Platão, no Teeteto, já definia conhecimento como opinião verdadeira acompanhada de logos, que em grego significa tanto razão quanto linguagem. Mas Edmund Gettier formulou uma crítica a essa definição. Ele formulou dois contra-exemplos, dois casos em que alguém tem uma crença verdadeira e justificada, mas não tem conhecimento. Se esses são mesmo contra-exemplos, então as condições para o conhecimento estabelecidas pela definição tradicional, embora possam ser necessárias, não são suficientes. Esse problema gerou um grande debate sobre a natureza do conhecimento. Os casos de Gettier são mesmo contra-exemplos da definição tradicional? Se são, qual ou quais condições devem ser acrescentadas à definição para tenhamos um conjunto de condições necessárias e suficientes? Ou o conceito de conhecimento é indefinível?

Independentemente do problema de Gettier, se as condições estabelecidas pela definição tradicional de conhecimento são mesmo condições necessárias, então há mais três questões na nossa agenda epistemológica: O que é crença? O que é verdade? E o que é justificação? 

Há um relativo consenso que crer é tomar uma proposição como verdadeira. (Uma proposição, para os presentes propósitos, pode ser definida como o conteúdo de uma frase do modo indicativo.) Quando a proposição acreditada é verdadeira, a crença é verdadeira. Podemos nos enganar, ou seja, tomar uma proposição como verdadeira, quando de fato ela é falsa. E podemos crer sem estarmos justificados. Mas devemos estar justificados para crer? Essa é uma obrigação? É claro que se o objetivo é o conhecimento, a resposta é "sim". Mas devemos perseguir esse objetivo sempre? Ou, embora via de regra isso seja o que devemos fazer, há casos que são exceções? Há uma relativamente nova disciplina filosófica que lida com problemas que estão na zona de intersecção entre a epistemologia e a ética: a ética da crença. Sua principal questão é: as obrigações epistêmicas, aquelas que devemos cumprir para obter conhecimento ou crença justificada, são também obrigações morais?

Outras questões importantes sobre a crença: toda crença é consciente? Podemos nos enganar sobre quais crenças temos? A crença é um estado mental ou uma disposição para o comportamento? As crenças são voluntárias? Temos algum controle sobre nossas crenças? O que é uma proposição?

Há uma grande controvérsia sobre como definir a verdade. Mas há uma controvérsia anterior: quais são os portadores de verdade, ou seja, de que coisas dizemos que são verdadeiras? Os principais candidatos são: frases, proposições, enunciados, e pensamentos. Há quem ofereça resistência a reconhecer quaisquer desses candidatos porque defendem uma concepção de verdade como identidade, segundo a qual o que a frase verdadeira "Sócrates é sábio", por exemplo, expressa é o próprio fato que Sócrates é sábio. A verdade não seria sobre os fatos, mas seria os próprios fatos. Proposições verdadeiras seriam o mesmo que os fatos. Dizer que uma frase expressa uma proposição verdadeira seria o mesmo que dizer que ela expressa um fato. Mas essa concepção de verdade enfrenta vários problemas, tal como esse: eu posso lembrar da proposição verdadeira que Sócrates é sábio sem saber que ela é verdadeira e posso não lembrar do fato que Sócrates é sábio. Portanto, a proposição verdadeira que Sócrates é sábio não é o fato que Sócrates é sábio.

A definição de verdade mais aceita e intuitiva, que tem um apelo inicial mais forte, é a definição correspondencista de verdade: a verdade seria uma relação de correspondência entre um portador de verdade, geralmente uma proposição, e um fato, o modo como as coisas estão no mundo. Mas o caráter intuitivo dessa definição vai se desvanecendo quando passamos de proposições empíricas para proposições modais, proposições da matemática, proposições morais e proposições estéticas. O que constitui os fatos modais? O que constitui os fatos matemáticos? O que constitui os fatos morais? O que constitui os fatos estéticos?

Uma outra definição, menos aceita, é a definição pragmatista de verdade, segundo a qual uma proposição é verdadeira quando a crença nela é, de alguma forma, útil. Essa definição é contra-intuitiva porque parece haver verdades inúteis e falsidades úteis. 

Uma terceira definição de verdade é a coerentista, segundo a qual uma proposição é verdadeira quando faz parte de uma totalidade abrangente e coerente de proposições. Essa definição é contra-intuitiva porque parece ser possível haver totalidades distintas de proposições igualmente abrangentes e coerentes e incompatíveis entre si. 

Por fim há a concepção deflacionista de verdade, segundo a qual a verdade não pode ser definida em termos de condições necessárias e suficientes, tal como almejam os adeptos das três definições anteriores. A verdade seria um conceito cujo conteúdo pode ser totalmente elucidado pelo esquema T: "p" é verdadeira se e somente se p, onde p é uma proposição qualquer. Estamos dispostos a tomar como verdadeiras todas as instâncias desse esquema. O conceito de verdade teria como única função possibilitar construir certas generalizações que, sem ele, não poderíamos ("A primeira coisa que você disser amanhã é verdadeira", por exemplo). Nos demais casos ("É verdade que chove", por exemplo) ele simplesmente torna sintaticamente explícito que a proposição está sendo afirmada.

O correspondencismo às vezes é estimulado por uma certa confusão entre uma verdade lógica, o esquema T, e o esquema da correspondência. Mas enquanto que o esquema T é uma equivalência e, por isso, pode ser investido sem que seu conteúdo seja modificado, o esquema da correspondência, a saber, "p" é verdadeira porque p, não pode ser invertido sem mudança de conteúdo. Dizer que p porque "p" é verdadeira é dizer que o fundamento do fato que p é que a proposição "p" é verdadeira. Mas que sentido faz dizer que chove porque "Chove" é verdadeira?

Há também uma grande controvérsia sobre o que é uma justificação. Há um relativo consenso que a justificação é aquele elemento que tem o papel de eliminar, tanto quanto possível, o fator sorte da nossa aquisição de crenças. Se uma crença é justificada, então não será por pura sorte que ela é verdadeira. Todavia, há divergência sobre como a justificação exerce essa função: ela torna a verdade da proposição acreditada provável, ou ela implica logicamente que a proposição acreditada é verdadeira? É ou não possível que uma crença falsa seja justificada? 

Há uma concepção de justificação que está na origem de um famoso problema cético: o trilema de Agripa. Se a justificação consiste em inferir validamente a proposição acreditada de outras proposições justificadas, então toda proposição é justificada inferencialmente. Mas isso gera um regresso das justificações: uma crença é justificada porque é inferida de outras, que são justificadas porque são inferidas de outras, que são justificadas porque são inferidas de outras, e assim por diante. Esse regresso pode ter apenas três estruturas, mas nas três, argumenta-se, nenhuma crença é justificada: ou o regresso é infinito, ou ele é circular, ou ele termina em alguma crença não justificada. Todavia, esse concepção de justificação não necessita ser aceita.

Há uma teoria da justificação, o externismo, segundo a qual é possível que algumas crenças sejam justificadas sem que aquele que possui a crença saiba o que justifica essa crença. Isso é o que parece acontecer, por exemplo, com aquelas pessoas que são capazes de dizer o dia da semana de qualquer data, sem que elas saibam dizer como são capazes disso. Parece haver um mecanismo gerando crenças nessas pessoas e esse mecanismo parece justificar suas crenças, pois as crenças geradas são geralmente verdadeiras. Mas, se é assim, então talvez o regresso das justificações termine em crenças que não são justificadas inferencialmente.

Há uma grande controvérsia epistemológica sobre se há ou não conhecimento a priori, ou seja, sobre se há ou não como justificar crenças verdadeiras de modo independente da experiência sensível. Duas ciências muito importantes parecem fornecer exemplos de crenças verdadeiras justificadas a priori: a lógica e a matemática. A experiência sensível confirma as crenças justificadas nessas ciências. Mas não parece ser a experiência que as justifica. Se alguém contar dois conjuntos de 5 bolas de gude e encontrar 11 como resultado não vamos tomar isso como a refutação de que 5+5=10. Vamos pensar que ou houve um erro na contagem, ou uma bola de gude foi acrescentada desapercebidamente a um dos conjuntos. Mas se a experiência não é fonte de refutações de crenças aritméticas, então tampouco é sua fonte de justificações. Semelhantemente, não parece ser a experiência que justifica a crença de que nenhuma contradição é verdadeira ou que ou que toda proposição ou é verdadeira, ou é falsa, por exemplo. Tampouco examinamos todos os solteiros para constatar que nenhum deles é casado. Mas no que consiste uma justificação a priori? Se a percepção sensível não desempenha nenhum papel na obtenção de conhecimento a priori, como o obtemos? Todavia há filósofos, como Quine, por exemplo, que sustentam que todas as crenças, inclusive matemáticas e lógicas, são, direta ou indiretamente, justificadas pela experiência, na medida em que o que é justificado não são crenças particulares, mas sempre uma totalidade de crenças que constitui nossa melhor teoria sobre o mundo.

Há uma grande e longa controvérsia sobre se a metafísica produz conhecimento e, no caso de produzir, se é um conhecimento a priori ou empírico. Como podemos saber quais tipos de coisas existem? Como podemos conhecer a essência das coisas? Como podemos saber quais mundos são possíveis? Os empiristas radicais, claro, argumentam que não há conhecimento metafísico a priori, sendo a metafísica, no melhor dos casos, um inventário das entidades postuladas pelas nossas melhores teorias empíricas. Os racionalistas, por sua vez, argumentam que a metafísica produz genuíno conhecimento a priori, que pode inclusive contrariar teorias científicas. Outros, como Wittgenstein, argumentam que as essências nada mais são do que critérios linguísticos por meio dos quais usamos nossos predicados e que podem ser alterados conforme a utilidade prática da linguagem. Quando descobriu-se que a maior parte do que se chamava água era formado por moléculas de H2O, fez-se uma mudança conceitual na química, substituindo os antigos critérios para o uso de "água" por novos, mais úteis para os propósitos da ciência.

Os empiristas radicais têm dificuldade para acomodar um tipo de conhecimento que parece ser a priori: o conhecimento inato. A ironia é que as evidências para a existência desse tipo de conhecimento são empíricas. Tudo que aprendemos por meio da experiência parece depender de reagirmos naturalmente a ela de um modo que não aprendemos com a experiência. Chomsky, por exemplo, argumenta que a aquisição da linguagem depende de um conhecimento inato de uma gramática universal. Estudos parecem mostrar que, mesmo antes de aprender uma linguagem, os bebês identificam expressões e comportamentos empáticos e não-empáticos, reagindo com simpatia aos primeiros e com antipatia aos segundos.

Além da percepção sensível, outras fatores desempenham um papel na aquisição de conhecimento empírico, tal como a introspecção, a memória, o testemunho e a autoridade de especialistas, por exemplo. A introspecção é o que nos possibilita o autoconhecimento, ou seja, o conhecimento da mente de si, embora muitas vezes obtenhamos esse tipo de conhecimento através de uma reflexão sobre nosso próprio comportamento, como no caso do autoconhecimento das nossas crenças, desejos e temores. Mas ninguém reflete sobre o comportamento de si para saber que vê vermelho, ou que está ouvindo um barulho, por exemplo. A memória, por sua vez, não desempenha um papel apenas epistêmico. Ela parece desempenhar um papel metafísico crucial na constituição da identidade pessoal ao longo do tempo. Ser a mesma pessoa ao longo do tempo parece implicar a capacidade de unificar e acessar os conteúdos da mente de si por meio da memória. Muitos conhecimentos que temos são obtidos de modo indireto, seja porque uma testemunha confiável relatou um evento, seja porque examinamos os registros de conhecimentos obtidos por especialistas.

Há filósofos que argumentam ou que não temos muito do conhecimento que alegamos ter ou que, pior ainda, não podemos ter muito do conhecimento que alegamos ter. Estes são os céticos, que existem desde a antiguidade grega. Os céticos ou argumentam ou contra a existência de conhecimento, alegando que há tanta razão para crer quanto para não crer no que se alega saber, ou contra a possibilidade do conhecimento. Agripa, referido acima, era um cético da Grécia antiga que justamente, com o seu trilema, procurava mostrar que o conhecimento não é possível. Mas há uma diferença entre o ceticismo dos antigos e o ceticismo moderno, como aquele da Primeira Meditação de Descartes.[2] Os filósofos antigos, em geral, inclusive os céticos, não faziam uma separação entre teoria e prática, mas procuravam viver de acordo com o que pensavam quando filosofavam. Isso colocava um problema para os céticos, pois como eles poderiam levar suas vidas de acordo com a alegação de que não temos conhecimento? Para evitar esse problema, Descartes distinguiu entre vida teórica e vida prática e alegou que podemos duvidar da verdade de uma proposição enquanto estamos fazendo uma investigação teórica e tomá-la como verdadeira na vida prática, para podermos levar a cabo nossos afazeres. Mas essa distinção é controversa.

Os céticos em geral não apenas duvidam, mas procuram justificar suas dúvidas por meio de argumentos, para que suas dúvidas sejam racionais. Os argumentos céticos principais formulados por Descartes são dois, um baseado na hipótese cética de que estamos sonhando quando alegamos conhecer o mundo por meio da percepção sensível e a hipótese cética de fomos criados de tal forma por um gênio maligno que tudo no que acreditamos é falso e não podemos descobrir a falsidade de nossas crenças para nos corrigirmos. O primeiro argumento foi destinado a colocar em dúvida as crenças sobre o mundo exterior e o segundo, as crenças matemáticas. Hilary Putnam formulou um argumento cético que se destinava a pôr em dúvida nosso conhecimento do mundo exterior, tal como o argumento do sonho de Descartes. Mas sua hipótese cética era a de que somos cérebros em uma cuba, tal como formulado acima, quando falei sobre questões acerca de possibilidades. Mas, tal como Descartes, Putnam não formulou esse argumento para defender o ceticismo, mas para mostrar as virtudes de sua teoria do significado, que ele alega poder ser usada para refutar o ceticismo. Descartes, por sua vez, ao refutar os seus próprios argumentos céticos, almejava encontrar a certeza absoluta e dar novos fundamentos para as ciências.[3]

Hume iniciou uma tradição cética em relação ao que parece ser uma das principais ferramentas para a obtenção de conhecimento empírico ou crenças baseadas na experiência: a indução. A indução é um tipo de raciocínio em que as premissas descrevem observações particulares de que certos tipos de coisas possuem certa propriedade e a conclusão é uma generalização sobre todas as coisas desse tipo. Por exemplo: cada observação de um corvo preto gera uma premissa da indução e a conclusão seria que todos os corvos são pretos. Essa conclusão, se verdadeira, é verdadeira não apenas dos casos observados, mas dos casos ainda não observados. A indução é dedutivamente inválida: é sempre possível que suas premissas sejam verdadeira e sua conclusão seja falsa. Hume argumentou que esse tipo de raciocínio está baseado no princípio geral segundo a qual a natureza, no futuro, se comportará do mesmo modo regular que fez no passado. Mas esse princípio, segundo ele, não pode ser justificado. Ou ele é justificado a priori, ou por meio da experiência. Se fosse justificado a priori, com base apenas no conhecimento das "relações entre as idéias", então aquele princípio seria necessário e isso tornaria a indução dedutivamente válida. Se fosse justificado pela experiência, ele seria justificado pela indução. Mas isso geraria uma petição de princípio, ou seja, um raciocínio que de alguma forma contém entre as premissas a sua conclusão. A indução seria baseada em um princípio que seria justificado pela indução.

Questões epistêmicas surgem em outras disciplinas filosóficas. Por exemplo: "Há conhecimento metafísico?", "Há conhecimento semântico?", "Há conhecimento moral?". "Há conhecimento estético?", "Há conhecimento religioso?", "Como conhecemos entidades abstratas, dado que não mantemos nenhuma relação causal com elas?", etc.


Filosofia da linguagem

Acima falamos sobre definições, sobre o significado de certas expressões que figuram em certos problemas filosóficos, sobre proposições. Geralmente questões filosóficas sobre esse tipo de coisas, e outros referente à linguagem usada para formular os problemas filosóficos, fazem parte de uma antesala de muitas disciplinas filosóficas. Mas há uma disciplina que lida com os problema filosóficos mais gerais sobre a linguagem, a filosofia da linguagem.

Alguns dos principais problemas da filosofia da linguagem são metafísicos. Mas outros são epistêmicos. O principal problema é justamente a questão sobre o que é a linguagem. Ela consiste em um sistema de sinais, sem dúvida. Mas o que é um sinal? Quantos sinais há em um quadro negro quando escrevemos duas vezes a apalavra "casa" nele? Um escrito duas vezes, ou dois?[4] Sinais são coisas que compreendemos/entendemos. Mas o que é compreender/entender um sinal? É ter um certo estado mental? É ter uma certa disposição? O que compreendemos é o conteúdo/significado do sinal. Mas o que é o conteúdo/significado? Uma entidade mental? Algo que temos em mente? Uma entidade abstrata que apreendemos com a mente? O modo como usamos o sinal? Quando usamos um sinal com um certo conteúdo/significado, então certos usos desse sinais são corretos e outros são incorretos, ou seja, há critérios de correção para seu uso. Isso significa que o significado é essencialmente normativo? Usar uma palavra com certo significado implica comprometer-se com certas obrigações subjetivas? Devemos usar o sinal de um determinado modo quando o usamos com um determinado significado? Que o uso de um determinado sinal tenha critérios de correção significa que ele é usado de acordo com uma regra. Mas o que é uma regra? É uma entidade mental? É uma entidade abstrata? Ou é simplesmente uma disposição para o uso de um sinal?

Um dos problemas mais específicos mas muito importante da filosofia da linguagem foi aludido acima: os termos gerais são todos definíveis em termos de condições necessárias e suficientes? Termo gerais são aquelas expressões que podem ser predicadas verdadeira ou falsamente das coisas, tal como os termos "conhecimento", "verdade", "tigre", "planeta", "guerra", etc. Eles possuem, portanto, uma generalidade: há uma totalidade, ou conjunto, ou classe de coisas que são conhecimentos, verdades, tigres, planetas, guerras, etc. Essa totalidade/conjunto/classe pode não conter nenhum elemento, ou um elemento, ou mais elementos, dependendo do termo geral. Até onde sabemos, a totalidade dos unicórnios, por exemplo, é zero. A totalidade dos números naturais, por outro lado, é infinita. A questão, então, é: há condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que algo pertença à totalidade de qualquer termo geral? Há quem defenda, como Frege, que sim, ao menos para os termos gerais que não sejam primitivos. Termos primitivos são aqueles que estão no final da cadeia de definições em termos de condições necessárias e suficientes. Esquematicamente: o termo T é definido pelos termos T1 e T2, T1 é definido por T3 e T4, T2 é definido por T5 e T6, e assim por diante, até que chegamos aos termos Tn... Tm, os termos primitivos que são indefiníveis. Quem defende essa posição pode ser chamado de essencialista, na medida em que defende que, com exceção dos termos primitivos, todos os termos gerais expressam uma essência. Mas há quem defenda, como Wittgenstein, que muitos termos não-primitivos não são definíveis nos termos de condições necessárias e suficientes, ou ao menos que nossa competência no uso desses termos não está baseada no conhecimento de nenhuma essência. 

Um potencial exemplo desse tipo de termo são os termos vagos. Um termo T é vago quando embora haja exemplos paradigmáticos do que é T e do que não é T, há casos que são indeterminados. Por exemplo: temos casos paradigmáticos do que é do que não é uma pessoa calva, ou do que é e do que não é um monte de arroz; mas com quantos fios de cabelo na cabeça alguém passa a ser calva e com quantos grãos um conjunto de grãos de arroz passa a ser um monte de arroz? A fronteira entre ser e não ser calvo, ou entre ser ou não ser um monte, parece difusa. Por isso, termos vagos não parecem ser passíveis de uma definição em termos de condições necessárias e suficientes. Mas os termos vagos parecem colocar um problema para o princípio da bivalência, segundo o qual toda proposição é ou verdadeira ou falsa. Se João é um caso fronteiriço entre calvice e não-calvice, qual é o valor de verdade de "João é calvo"? Essa frase não expressa uma proposição? Ou o princípio de bivalência é falso porque há proposições que não são nem verdadeiras, nem falsas?

Um outro tipo de termo que parece conter uma indeterminação semelhante, porém distinta, são os termos para semelhanças de família. Parece haver condições necessárias para que algo seja um jogo, por exemplo, tal como ser uma atividade, mas parece que não há um conjunto de condições necessárias e suficientes para algo ser um jogo. Identificamos algo como jogo talvez por identificar que ele satisfaz certas condições necessárias para algo ser um jogo e, ademais, por causa da sua semelhança com exemplos paradigmáticos do que chamamos jogos, isto é, exemplos sobre os quais não há dúvida de que sejam jogos.

Um outro conjunto de problemas importante da filosofia da linguagem diz respeito aos nomes próprios. Parece que a função de um nome próprio, como de qualquer termo singular, é se referir a um indivíduo, para que, assim, possamos dizer alguma coisa sobre ele, mesmo que falsa. Todavia, há alguns casos que desafiam essa intuição. Por exemplo: usamos o nome "Jesus" como um nome próprio de uma pessoa que supostamente nasceu a 2023 anos atrás. Mas fora a Bíblia, as evidências históricas de que ele tenha existido são muito escassas, tanto que alguns duvidam que ele tenha existido. Se esse for o caso, então o nome "Jesus" não possui referência, ou como se diz em filosofia da linguagem, é vazio. A consequência disso parece ser que o que dizemos sobre Jesus não é nem verdadeiro, nem falso. Para que fosse falso que Jesus nasceu em Belém, por exemplo,, Jesus deveria ter existido e ter nascido em outra cidade. Por outro lado, nomes de personagens de ficção tampouco parecem ter referência. Mas se digo que Sherlock Holmes é um cantor de pagode, parece que digo algo falso. Como isso pode ser falso, se Sherlock Holmes não existe? Esse é o velho problema que surgiu na filosofia antiga sobre como é possível falar sobre o que não existe ou sobre o nada.

Um outro problema filosófico sobre os nomes próprios é justamente o que determina a relação de referência nos casos em que o nome claramente tem uma? O que faz com que um nome se refira a um determina indivíduo? Alguns sustentaram que isso ocorre porque o conteúdo/significado de cada nome é uma certa descrição que se aplica verdadeiramente a apenas um indivíduo. O conteúdo/significado de "Aristóteles", por exemplo, seria o mesmo de "O autor da Metafísica". Mas Kripke formulou objeções a essa teoria. Aristóteles ainda seria o mesmo Aristóteles mesmo que nunca tivesse escrito a Metafísica, por exemplo. Além disso, sabemos que Aristóteles é o autor da Metafísica de maneira empírica, e não a priori por conhecermos o conteúdo/significado do nome "Aristóteles". Aliás, como poderíamos ter descoberto que Aristóteles não é o autor da metafísica se "Aristóteles" fosse sinônimo de "O autor da Metafísica"? Kripke defendeu que a referência é fixada por um batismo e é transmitida por uma cadeia histórica ao longo do tempo, ou perdida, quando essa cadeia é interrompida de alguma forma. Graças a essa cadeia, que incluiu a modificação do nome grego quando foi introduzido no português, hoje podemos nos referir a Aristóteles e falar sobre ele.

Há um clássico problema filosófico normalmente apresentado como um problema metafísico, mas que pode ser apresentado, com algumas vantagens, como um problema de filosofia da linguagem. Trata-se do problema dos universais. Como vimos, termos gerais são aqueles que podem ser predicados verdadeira ou falsamente das coisas. Isso parece significar que as coisas das quais predicamos verdadeiramente um termo geral têm algo em comum a muitos, algo universal (por oposição a particular ou individual). Mas elas têm mesmo algo em comum? O que é isso? Normalmente dizemos que essa coisa em comum é uma propriedade. Por exemplo: se as frases "João é professor" e "Maria é professora" são ambas verdadeiras, se predicamos verdadeiramente "professor" de João e de Maria, então parece que João e Maria têm uma propriedade em comum, ser professor, que é expressa ou referida pelo termo geral. Essa propriedade existe mesmo? O que ela é? Algo que constitui João e Maria (realismo moderado)? Algo independente dos indivíduos João e Maria mas que mantêm uma relação com eles (realismo extremo)? Um conceito na mente de quem predica (conceitualismo)? Ou não há uma tal propriedade mas apenas o termo geral que usamos de certa forma (nominalismo)? 

Essa é a maneira metafísica de se formular o problema. Mas creio que a maneira linguística é melhor porque é mais neutra em relação às suas possíveis respostas, pois não parte da aceitação aparentemente intuitiva da existência de propriedades, entendidas de alguma forma realista. Na sua formulação linguística, o problema seria: termos gerais têm alguma referência? Se sim, o que é sua referência? Algo que constitui os indivíduos? Algo independente dos indivíduos? Ou algo na mente? Se eles não possuem referência, como explicar o uso de termos gerais? Seja qual for a formulação em que o problema seja apresentado, uma pressuposição parece ser assumida: que termos gerais têm um uso uniforme, que têm de ser encontrada uma resposta a essas perguntas que seja verdadeira de todos os termos gerais. Todavia, há uma teoria sobre o termo geral "verdade", como vimos, que afirma que esse termo não se refere ou expressa qualquer propriedade substancial, ou seja, algo comum a tudo que é verdadeiro, mas é um mero recurso lógico-sintático que nos permite fazer certas generalizações. Não há uma propriedade comum que todas as proposições possuem que seria a propriedade da verdade. Portanto, aquela suposição do problema não parece ser verdadeira desse caso, mesmo que seja verdadeira de outros.

Por falar em verdade, embora tenha sido apresentado na seção sobre epistemologia, o problema sobre se o termo "verdade" pode ser definido e, se sim, sobre qual é a sua definição correta é também um problema da filosofia da linguagem. Ele foi apresentado como um problema da epistemologia porque o conceito de conhecimento é definido tradicionalmente por meio do conceito de verdade. Mas podemos dizer de frases que são verdadeiras ou falsas. Determinar o que é para uma frase ser verdadeira é uma questão da filosofia da linguagem.

Há muitas questões da filosofia da linguagem importantes para disciplinas filosóficas específicas. Já vimos que a definição de "conhecimento" é central para a epistemologia, por exemplo. Mas há outras: enunciados éticos e estéticos são verdadeiros ou falsos? Predicados éticos e estéticos se referem a ou expressam algum tipo de propriedade? Enunciados normativos, sobre deveres, proibições e permissões, podem ser reduzidos a enunciados não normativos sobre fatos naturais?


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[1] Aristóteles concebia a investigação metafísica como uma investigação sobre o ser na qual se procura determinar o que é ser um número, por exemplo, o que é ser físico, o que é ser biológico, o que é ser mental, etc. Mas ele também formulou uma questão mais geral que essas. Ele concebeu uma questão não sobre o que é para uma coisas ser desse ou daquele tipo de coisas, mas o que é para uma coisa simplesmente ser: o que é o ser como ser? Uma dificuldade para essa questão é a ambiguidade do verbo "ser". Platão, no seu diálogo Sofista, foi um dos primeiros a notar essa ambiguidade. Frases como "João é professor" e "João é Joca" o verbo "ser" não parece significar a mesma coisa. Com a primeira frase estamos dizendo que uma pessoa, João, tem uma certa propriedade, ser professor. Com a segunda não estamos dizendo que uma pessoa possui a propriedade de ser Joca, mas estamos dizendo que a pessoa João e a pessoa Joca são a mesma pessoa. A primeira frase é uma frase predicativa singular, em que predicamos algo de um indivíduo. A segunda frase é uma frase de identidade, em que dizemos que uma coisa é idêntica a si mesma. Mas o verbo "ser" também tem mais um significado no português. Na bíblia há afirmações como "Deus é", que significa o mesmo que "Deus existe". Esse é um uso arcaico do verbo "ser", mas pertence ao português. Tudo isso torna difícil, para dizer o mínimo, determinar o que é para uma coisa, em geral, ser.

[2] Embora Descartes ele próprio não seja um cético, ele se serviu do método da dúvida cética para encontrar a certeza absoluta. Sua estratégia era a seguinte: se duvidarmos de tudo que pode ser (racionalmente) duvidado, então, se houver uma certeza absoluta, ela será o resíduo dessa dúvida máxima.

[3] Para uma exposição mais detalhada desses argumentos céticos, ver essa postagem.

[4] Uma resposta aqui seria: ambos, dois e um. Há dois sinais concretos que são instâncias ou exemplos concretos do mesmo sinal tipo. Quando perguntamos quantas letras o alfabeto possui, por exemplo, não estamos perguntado nada sobre sinais concretos usados em diferentes contextos, mas sobre sinais tipo, que são uma espécie de entidade abstrata, que não estão em lugar nenhum e não são destruídos mesmo que todos os sinais concretos sejam destruídos. A palavra "casa", por exemplo, é uma das milhares palavras tipo do português. E nessa última frase eu usei um exemplo concreto dessa palavra para falar sobre essa palavra tipo.


domingo, 1 de maio de 2022

Essencialismo, anti-essencialismo e arte


Essencialismo é a teoria metafísica segundo a qual há condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que algo seja um exemplo de um determinado tipo de coisas. O conjunto dessas condições necessárias e suficientes é tradicionalmente chamado a essência geral de um tipo de coisas. A essência, portanto, não é alguma coisa etérea que habita as coisas, como algumas vezes não-filósofos estão inclinados a pensar. 

Uma consequência dessa teoria metafísica é uma teoria semântica sobre os conceitos: o conceito de um tipo de coisas que possui uma essência pode ser definido em termos de condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para que ele se aplique verdadeiramente a alguma coisa. Portanto, essa definição é a expressão linguística da essência desse tipo de coisas. 

Por exemplo: suponha que a definição tradicional de conhecimento esteja correta e que conhecimento, portanto, seja uma crença verdadeira justificada.[1] Nesse caso, essa definição apresenta as condições individualmente necessárias, a saber, ser uma crença, ser verdadeira e ser justificada, e conjuntamente suficientes para que algo seja conhecimento; apresenta a essência do conhecimento.

Na linguagem ordinária, há um uso do adjetivo "essencial" aparentado com o uso filosófico, porém com uma diferença importante. Uma propriedade é essencial em relação a um certo tipo de coisas quando possuir essa propriedade é uma condição necessária para ser um exemplo de uma coisa desse tipo. Mas nem sempre essa condição necessária é também suficiente. Por exemplo: ter um assento é uma propriedade essencial das cadeiras, ou seja, ter assento é uma condição necessária, embora não suficiente, para algo ser uma cadeira. Uma outra condição necessária (essencial, no sentido ordinário) mas não suficiente para que algo seja uma cadeira, é ter um encosto ou espaldar. Mesmo a conjunção dessas duas condições não é suficiente para algo ser uma cadeira. Por isso, no sentido filosófico tradicional de "essência", a conjunção dessas duas condições necessárias não constitui a essência das cadeiras, pelo simples fato que coisas que não são cadeiras podem muito bem satisfazer essas condições.

Esse exemplo das cadeiras é prefeito para ilustrar o seguinte ponto: negar que cadeiras tenham essência (no sentido filosófico tradicional), isto é, ser anti-essencialista em relação às cadeiras, é compatível com admitir que há condições necessárias para que algo seja uma cadeira. Portanto, em um sentido de "anti-essencialista", você pode ser anti-essencialista em relação a um certo tipo de coisas e admitir que há condições necessárias para que algo seja um exemplo de uma coisa desse tipo. 

Penso que esse é exatamente o caso de Wittgenstein no que respeita à sua idéia de conceito de semelhanças de família. Tais conceitos não são definíveis em termos de condições necessárias e suficientes. Mas, o que eu defendo é que, para Wittgenstein, isso é compatível com haver condições necessárias para a sua aplicação. Wittgenstein introduz a idéia de conceitos de semelhanças de família por meio do exemplo do conceito de jogo. Esse conceito não é aplicado com base no conhecimento de condições necessárias e suficientes, mas com base nas semelhanças entre seus exemplos. Tais semelhanças não são propriedades que todos os exemplos possuem, mas são análogas às semelhanças fenotípicas entre os membros de uma família biológica. Os membros de uma família biológica não possuem todos as mesmas propriedades fenotípicas, mas se dividem em subgrupos de possuem propriedades comuns e esses subgrupos possuem zonas de intersecção com outros subgrupos. De forma análoga, os critérios de aplicação dos conceitos de semelhanças de família são semelhanças desse tipo entre os exemplos. Mas, e esse é o ponto importante, não apenas isso. Os conceitos de semelhança de família também são aplicados com base em condições necessárias. Voltando ao exemplo dos jogos, nada é um jogo se não for (a) uma atividade, (b) se não for governado por regras, (c) se não for inventado, etc. Ao aplicarmos o conceito de jogo a um caso particular, além de levarmos em conta essas condições necessárias, satisfeitas por tudo que é um jogo, levamos em conta as semelhanças entre o caso em questão e os demais exemplos de jogos, especialmente os exemplos paradigmáticos. Isso é assim porque aquelas condições necessárias, comuns a todos os jogos, não são conjuntamente suficientes para que algo seja um jogo. Creio que é isso que Wittgenstein quer dizer quando diz que os jogos não têm nada em comum: eles não têm nada em comum que permita definir "jogo" em termos de condições necessárias & suficientes.[2]

Mas essa última afirmação precisa ser qualificada para que fique claro em que sentido Wittgenstein é um anti-essencialista  e em que sentido ele não é. A afirmação categórica que os membros de um conjunto, tal como o conjunto dos jogos, não possuem propriedades que todos e apenas os jogos possuem somente poderia ser justificada pelo exame de todos os jogos. Certamente Wittgenstein não fez isso quando escreveu as Investigações Filosóficas. Portanto, a caridade interpretativa demanda que não atribuamos essa afirmação a ele, se houver uma outra maneira de interpretá-lo. E há. O ponto de Wittgenstein era: a despeito de haver uma essência dos jogos, não aprendemos esse conceito nem o aplicamos com base no conhecimento (mesmo que implícito) dessa essência. Wittgenstein não era um essencialista com sinal negativo. Se fosse, estaria sustentando uma tese metafísica negativa. Em vez disso, ele argumentava contra o essencialismo semântico: a tese que nossos conceitos são aplicado com base no conhecimento de condições necessárias e suficientes. Não dispomos de um tal conhecimento, no caso dos conceitos de semelhança de família, como o conceito de jogo; não sabemos definir "jogo" em termos de condições necessárias e suficientes. Temos apenas o conhecimento de condições necessárias, mas não suficientes, e das semelhanças entre os jogos.

A importância filosófica dos conceitos de semelhança de família vem da alegação que conceitos tradicionalmente importantes para a filosofia, tal como os conceitos de verdade, conhecimento, bem, linguagem, etc., são conceitos de semelhança de família e, portanto, não possuem uma definição em termos de condições necessárias e suficientes, como os essencialistas sustentam.

Essa considerações são importantes para uma discussão que se deu no século passado sobre a definição de "obra de arte". Weitz[3], ao atribuir a Wittgenstein um anti-essencialismo, chega ao ponto de dizer que, para ele, não há nenhuma condição necessária para algo ser uma obre de arte. Um exemplo que ele usa para ilustrar seu ponto é o de troncos secos de madeira que encontramos à beira de rios, lagos e mares (driftwoods, em inglês). Ele afirma que alguém poderia chamar isso de "obra de arte", devido às suas qualidades estéticas. E isso, supostamente, mostraria que a propriedades de ser um artefato, de ser produzido por alguém, não é uma condição necessária para algo ser uma obra de arte, pois aqueles troncos certamente não a satisfazem. 

Todavia, ao dizer isso, Weitz negligencia uma distinção que ele próprio formula: a distinção entre o uso descritivo e o uso avaliativo de "obra de arte". No seu uso avaliativo, quando dizemos que algo é uma obra de arte, estamos fazendo um elogio estético a essa coisa, ressaltando suas qualidades estéticas excelentes. Nesse sentido da expressão, não pode haver uma obra de arte ruim, de má qualidade. Mas quando se discute se as obras de arte possuem ou não uma essência, o que está em questão é se o que chamamos de obra de arte no sentido descritivo possui uma essência. No sentido descritivo, algo pode ser uma obra de arte ruim, de má qualidade (seja quais forem os critérios para isso), pois para ser obra de arte, nesse sentido, embora seja necessário ser um artefato produzido por alguém com finalidades estéticas, não é necessário que seja algo que atinge esse objetivo de forma excelente. Alguém pode negar que certos tipos de música, por exemplo, sejam obras de arte de qualidade excelente. Mas negar que sejam obras de arte em absoluto somente pode fazer sentido se "obra de arte" estiver sendo usada no sentido avaliativo. Por mais ridículas que sejam as rimas que alguém faz ao tentar levar a cabo suas aspirações poéticas, o simples fato de avaliá-las como ridículas já denuncia que as estamos avaliando como obras de arte, ou seja, como um artefato produzido com finalidades estéticas. 

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[1] Edmund Gettier apresentou dois contra-exemplos dessa definição, dois casos que satisfazem as condições especificadas mas não são conhecimento.

[2] Por outro lado, há condições suficientes mas não necessárias para que algo seja um jogo. Por exemplo: ser uma atividade regrada inventada em que dois adversários, ou dois times de adversários, procuram marcar mais pontos com uma bola dentro de um tempo limitado. Vários atividades satisfazem essas condições e, por isso, são jogos. Mas muitos jogos não satisfazem ao menos algumas dessas condições. O tênis, por exemplo, satisfaz todas as condições, exceto a última: uma partida de tênis não tem um tempo limitado.

[3] Weitz, Morris (1956) “The Role of Theory in Aesthetics,” Journal of Aesthetics and Art Criticism, 15, pp. 27–35.





sábado, 12 de fevereiro de 2022

O paradoxo de Newcomb


Suponha que haja duas caixas A e B e que você tem duas possibilidades de escolha: ou escolher o conteúdo de ambas as caixas, ou escolher apenas o conteúdo da caixa B. A caixa A é transparente e pode-se ver que ela possui 1.000 reais. A caixa B é opaca e ou contém 1.000.000 de reais ou nada. Há uma pessoa cujas previsões feitas no passado sobre as escolhas que você fez estavam todas corretas. Se ela previu que você escolherá o conteúdo da caixa B apenas, então provavelmente ela conterá 1.000.000 de reais. Se ela previu que você escolherá ambas as caixas, então provavelmente a caixa B não conterá nada. Você não sabe o que ela previu e o conteúdo de B já está determinado. O que você faria? 

Muitos deliberariam assim: dado que você não sabe o que a pessoa previu e o conteúdo de B já está determinado, melhor escolher ambas as caixas e garantir ao menos 1.000 reais. Se aquela pessoa previu que você escolheria apenas o conteúdo de B, então há 1.000.000 de reais em B e esse dinheiro não vai desaparecer apenas porque você escolheu ambas as caixas. Portanto, se escolher ambas as caixas você ganha ao menos 1.000 reais, mas pode ganhar 1.001.000 reais.

Todavia, se eu escolher ambas as caixas, então é porque aquela pessoa previu isso, dado que, até agora, ela previu infalivelmente, e, portanto, provavelmente não há nada em B. Mas se eu escolher B, então é porque a pessoa previu isso e, portanto, provavelmente B possui 1.000.000 de reais. Consequentemente, parece mais razoável escolher apenas o conteúdo de B. 

Entretanto, parece absurdo que a minha escolha atual determine qual previsão foi feita no passado. Não pode ser que aquela pessoa previu no passado que eu escolheria B porque eu agora escolho B. Portanto, deve ser possível que ela preveja de forma errada. Sendo assim, existe a chance de que eu escolha ambas as caixas e que ela tenha previsto que eu escolheria apenas B, o que resultaria eu ganhar 1.001.000 reais.

Esse problema parece mostrar que há princípios igualmente plausíveis, mas aparentemente incompatíveis que guiam nossa deliberação em busca do máximo benefício pessoal em uma atividade cujo resultado depende do que vários participantes também deliberam. Se considerarmos as probabilidades que incluem o que os demais participantes fariam, a melhor escolha parece ser B. Mas se considerarmos que há uma melhor estratégia, se desconsiderarmos o que os demais participantes fariam, a melhor escolha parece ser A e B.

Esse paradoxo foi primeiramente formulado por William Newcomb, um físico estadunidense, mas foi popularizado por Robert Nozic, um filósofo estadunidense, em 1969.[1]

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[1] Robert Nozic (1969) "Newcomb's Problem and Two Principles of Choice", em: N. Reacher et al. (eds.), Essays in Honor of Carl G. Hempel, Synthese Library, vol. 24.



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Mito e ciência

Estátua de Poseidon em Atenas

Mito (do grego μυθος) é uma narrativa que conta uma história de certos personagens, humanos ou não, fictícios ou reais e que têm várias funções na cultura em que surge. O conjunto dos mitos de uma determinada cultura é a sua mitologia. Os mitos têm uma função moral, fornecendo exemplos de ações boas, que devem ser estimuladas, e más, que devem ser evitadas. Mas ele também pode fornecer exemplos de situações em que se enfrenta um dilema ou aporia moral. Um mito pode ter uma função social, fornecendo modelos de estruturas sociais ou situações sociais problemáticas que provocam reflexão. Uma das funções mais óbvias desempenhada por um mito é estética, como peça literária. Mas a função dos mitos que nos interessa aqui é a função explicativa. Mitos são usados para explicar os fenômenos naturais, sociais e psicológicos. Tais fenômenos seriam o efeito do exercício dos poderes dos personagens dos mitos. Por que houve um tsunami? Porque Poseidon estava furioso e sacudiu as águas. Por que as pessoas se apaixonam? Porque Eros flecha seus corações. Qual é a origem do Sol? Ele era um índio jovem que bebeu tintura de urucu fervente, começou a brilhar e irradiar calor e subiu aos céu. Dado que tais explicações estão baseadas no comportamento aparentemente irregular e, por isso, um tanto imprevisível de seres dotados de vontade, desejos, medos, temperamento, etc., os fenômenos naturais, sociais e psicológicos pareciam, a partir das explicações míticas, um tanto irregulares e, por isso, imprevisíveis.

Com o passar do tempo, por meio de cuidadosas observações os seres humanos começaram a notar mais e mais regularidades na natureza. Por exemplo: ele notaram que se mergulhassem verticalmente um tubo de extremidades abertas na água, tapassem a extremidade de cima e retirassem o tubo dá água, a água dentro do tubo não escorria para fora, mas apenas se a extremidade fosse destapada. O crescente conhecimento dessas regularidades permitiu aos seres humanos fazerem mais e mais previsões de eventos naturais. 

Mas a ciência deu seus passos mais decisivos quando se começou a elaborar teorias para explicar essas regularidades observadas e fazer previsões, não mais baseadas em raciocínios indutivos, isto é, em observações passadas, mas baseadas no conhecimento das propriedades de entidades postuladas por essas teorias. Um exemplo paradigmático precursor desse tipo de teoria é o atomismo de Demócrito e Leucipo, segundo o qual todas as entidades físicas são agregados de átomos, pequeníssimas partículas indivisíveis inobserváveis cujo comportamento determinado por suas propriedades determina a ocorrência dos eventos físicos e as propriedades das entidades físicas observáveis. 

As atuais teorias das ciências naturais seguem esse modelo explicativo, com a diferença que agora aplica-se a matemática para criar modelos dos fenômenos físicos. As teorias mais bem estabelecidas são aquelas que satisfazem as seguintes exigências: são as mais simples possível, permitem explicar tudo que já foi observado sobre os fenômenos acerca dos quais versam essas teorias e permitem fazer previsões que se confirmam.[1] Esse modo de justificar teorias científicas é chamado raciocínio abdutivo, ou abdução, ou inferência para a melhor explicação. Por exemplo: para explicar certos fenômenos físicos relacionados à força nuclear fraca e à força eletromagnética, em 1963, o físico Peter Higgs postulou a existência de uma partícula elementar, um bóson, que então passou a se chamar bóson de Higgs. A existência dessa partícula foi confirmada em 2013, por meio de um experimento feito no maior colisor de partículas do mundo. Esse experimento revelou a existência de uma partícula que tinha as propriedades atribuídas por Higgs ao seu bóson.[2]

Uma crença comum sobre a relação entre mito e ciência é que a ciência provou que os mitos eram histórias falsas, que as entidades míticas não existem, ou algo semelhante. Mas essa crença é, no mínimo, confusa. Em primeiro lugar, não há nenhuma teoria científica que diga qualquer coisas sobre os deuses do Olimpo, por exemplo. Portanto, nenhuma dessas teorias diz que esses deuses não existem. O que a evolução do trabalho científico fez, em vez disso, foi tornar a crença nas entidades míticas, no mínimo, inúteis para o trabalho explicativo. Há uma história que se costuma contar sobre Pierre Simon, marquês de Laplace, um físico francês da época de Napoleão: o imperador teria perguntado a Laplace por que Deus não desempenhava nenhum papel na sua última teoria sobre o movimento celeste, ao que Laplace teria respondido "Majestade, não precisei dessa hipótese". 

É claro que se a crença em seres mitológicos não rende a melhor explicação dos fenômenos naturais, tais crenças no mínimo carecem de justificação científica. E se, ainda pior, tais crenças contradizem as melhores teorias das ciências naturais, então temos justificação para acreditar que essas crenças são falsas. Mas o fato é que a ciência nunca esteve focada em refutar mitos, mas antes em elaborar as melhores teorias explicativas. Como bem notou Quine, os mitos já forneciam o modelo explicativo que ainda é empregado na ciência: a postulação de entidades inobserváveis cujo comportamento explicaria os eventos observáveis. A (grande) diferença é que os mitos não são eficientes para esse propósito como o são as teorias científicas.


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[1] Explicações e previsões possuem a mesma estrutura. Uma explicação de um determinado evento observado consistem em inferir esse evento da teoria. Uma previsão consiste em inferir da teoria um evento ainda não observado.

[2] De fato essas partículas não foram observadas. O que ocorreu foi que os dados capturados no experimento são compatíveis com a existência de uma partícula com as propriedades postuladas por Higgs.



quarta-feira, 27 de outubro de 2021

XIX Colóquio Brasileiro Sobre o Ceticismo - Encontro do GT Ceticismo 2021


PROGRAMAÇÃO


Quarta-feira, dia 27 de outubro de 2021


13h30 - Boas Vindas aos participantes

Coordenação da mesa: Luiz Eva

14h00 - Bruno Alonso (Doutorando UFRJ) – A crise cética de Montaigne  

14h30 - Marcelo Oliveira (Mestre UFMG) – Catolicismo, Ceticismo e Paradoxo na Apologia de Raimond Sebond de Montaigne 

15h00 - Intervalo

Coordenação da mesa: Waldomiro Silva Filho

15h10 - Rodrigo Pinto de Brito (UFRRJ) – A disputa entre Empiristas e Racionalistas de acordo com Galeno no De Sectis 

15h55 - Gisele Amaral (UFRN) - Favorino de Arles e a defesa da argumentação pro e contra

16h40 - Intervalo

Coordenação da mesa: Danilo Marcondes  

17h00 -  Roberto Bolzani (USP) – Considerações sobre a gênese do Filósofo Cético  

18h15 - Waldomiro Silva Filho (UFBA) - A Arte Cética da Conversação

Comentário: André Abath (UFMG) - Discordância e Reflexão Erotética


Quinta-feira, dia 28 de outubro de 2021


Coordenação da mesa: Rodrigo Brito

14h00 - Vinicius França (Pós-doutoramento UFMG) – O papel epistemológico da consciência nas Meditações de Descartes

14h30 - Ana Cláudia Teodoro (Doutoranda UFMG) – Dúvida e certeza em Descartes e Locke

15h00 - Intervalo

15h10 - Carlota Salgadinho (PUC-RJ) – O ceticismo de Hume no contexto do New Hume Debate

15h40 - Luiz A. Eva (UFABC) - Locke e o ceticismo cartesiano

16h25 - Intervalo

Coordenação mesa: Gisele Amaral

16h45 - Luiz Fernando Barrère Martin (UFABC) - Liberdade de caráter a que nenhuma filosofia pode ser estranha: considerações hegelianas sobre a agogé cética

17h30 - Eros Carvalho (UFRGS) - O disjuntivismo ecológico e o argumento causal 

18h15 - Intervalo

18h25 - Alexandre Machado (UFPR) - Pode alguém não ter crenças?


Sexta-feira, dia 29 de outubro de 2021


Coordenação da mesa: Luiz Fernando Barrère

14h00 - Robson Araújo (Mestre UFMG) - Ceticismo em “The Matrix”

14h30 - Mateus Uchôa (Doutorando UFMG) - Dos índios e dos não-humanos. Espectros extramodernos do ceticismo de Montaigne

15h00 - Intervalo

15h10 - Roberto Nitsche (Doutorando UFSM) - O Ceticismo de Peijnenburg e Atkinson em Relação ao Uso de Experimentos de Pensamento

15h40 - Marcelo Maciel (UFRRJ) - Sexto Empírico e Max Weber sobre a Causalidade

16h10 - Intervalo

Coordenação da mesa: Plínio Smith

16h30 - Danilo Marcondes (PUC-RJ/ UFF) - O narrador não-confiável como figura do cético

17h15 - Hilan Bensusan (UnB) Diaphonia e Incompletude

18h00 - Intervalo

Coordenação da mesa: Luiz Eva

18h10 - Plínio Smith (Unifesp) – Sexto sobre crença, opinião e dogma: a solução para o debate entre as interpretacões urbana e rústica

19h00 - Encerramento


        
Organização:  GT Ceticismo/ANPOF 
Não serão fornecidos certificados para ouvintes.

Inscrições para participação no Zoom: gtceticismo@gmail.com, até a véspera.

Transmissão ao vivo pelo youtube no endereço do Canal do GT Ceticismo:  https://www.youtube.com/channel/UCRV2gUPbHj5gL0zRuYFYqhg

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Andrea Loparic

É com imenso pesar que comunico o falecimento da professora e amiga Andrea Maria Altino de Campos Loparic, ocorrido ontem, dia 25 de outubro de 2021. A professora Andrea Loparic possui trabalho de pesquisa de excelência em filosofia e, principalmente, em lógica, tendo ajudado a difundir os estudos de lógica pelo Brasil. Ela graduou-se em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1961, tornou-se bacharel em filosofia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), em 1963, mestre em filosofia por essa mesma universidade, em 1964, e doutora em filosofia pela Universidade Federal de Campina, em 1988, com a tese Definição de conjuntos decidíveis de valorações pela fatorização da linguagem, orientada pelo saudoso Professor Balthazar Barbosa Filho. A professora Andrea Loparic trabalhou em várias universidades no Brasil, exercendo uma forte influência em várias gerações de pesquisadores. Ela lecionou na USP, Unicamp, UFPB, UFRGS (quando tive a felicidade de conhecê-la) e UFS. A professora Andre Loparic era antes de tudo uma pessoa incrível, doce, muito inteligente, espirituosa e profundamente engajada em lutas pelo bem comum. É uma grande perda para a comunidade acadêmica e para o Brasil. Descanse em paz, professora!

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O maior ataque terrorista da história contemporânea

O que é um ataque terrorista? Uma guerra é travada entre forças armadas (compostas de militares) inimigas. Em uma ação militar de guerra, uma força armada ataca a força armada inimiga e procura evitar atingir a população civil. Um ataque terrorista é uma ação violenta em que seus seus realizadores visam impor a sua vontade aos inimigos causando terror na população atacada, especialmente quando essa população é composta de civis. É isso que diferencia um ataque terrorista de uma ação militar de guerra: um ataque terrorista visa deliberadamente atingir a população civil, ou ao menos é uma ação que não se importa se o ataque atingirá a população civil. 

Ataques terroristas não são uma invenção moderna. Eles não surgiram nos últimos 150 anos. Há muitos registros históricos de ataques à população civil, visando causar terror, que aconteceram há muitos séculos.[1]

Terror é um medo extremo ou pânico. Os ataques terroristas visam causar esse medo extremo ou pânico na população em geral atacada (militares ou civis) para que seus governantes cedam às exigências daqueles causam o ataque. 

O ataque sionista do Hotel King David (organizado por Menachem Begin, que, mais tarde, foi primeiro ministro de Israel por dois mandatos) é um ótimo exemplo de ataque terrorista (o ataque matou muitos civis e seus realizadores sabiam que isso iria acontecer). Os ataques nazistas com bombas V1 e V2 à Inglaterra são um excelente exemplo de ataque terrorista, que atingiu muitos locais e cidadãos civis ingleses. Os ataques do IRA (Exército Revolucionário Irlandês) a favor da Irlanda se tornar independente do Reino Unido, são um outro bom exemplo. O ataque às Torres Gêmeas nos Estados Unidos realizado pela Al Qaeda é, certamente, um paradigmático exemplo de ataque terrorista.

Todavia, há um caso de ataque, que geralmente é tratado, principalmente por aqueles que o realizaram, como uma justificada medida extrema em nome de um bem maior (o fim da Segunda Guerra Mundial), que é, de fato, o maior ataque terrorista da história contemporânea: o bombardeamento estadunidense de duas cidades japonesas com recém criadas bombas atômicas: Hiroshima e Nagasaki. A guerra na Europa havia terminado em 8 de maio de 1945. Mas continuou no Pacífico. As duas bombas mataram entre 90 mil e 166 mil pessoas na cidade de Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, e entre 60 mil e 80 mil pessoas na cidade de Nagasaki, em 8 de agosto de 1945. A grande maioria das pessoas mortas eram civis e o governo e as forças armadas estadunidenses sabiam que esse seria o resultado. Não foi uma operação "cirúrgica", para usar um termo que se popularizou nos anos 90, com os ataques executados por meio de controles computadorizados nas guerras estadunidenses. Foi um ataque a duas cidades, quaisquer que fossem os seus habitantes: civis ou militares. E o objetivo era bem claro: causar terror na população atacada e forçar o seu governo a ceder à vontade daqueles que atacaram. Eles queria acabar com a guerra de uma maneira rápida. A desculpa esfarrapada era que um término rápido da guerra pouparia muitas vidas. Mas o resultado desse ataque foi a morte de centenas de milhares de civis. A Segunda Guerra Mundial durou 5 anos. A guerra no Afeganistão durou 20 anos! Se um término rápido da Segunda Guerra Mundial, que era travada, nesse final, apenas entre os Estados Unidos e o Japão, justificava o bombardeamento nuclear de duas cidades japonesas, por que o mesmo não justificaria um bombardeamento nuclear de duas cidades afegãs?

O lamento estadunidense oficial pelo ataque às Torres Gêmeas (que é de fato um grande ataque terrorista) é sempre usado como uma cortina de fumaça para encobrir sua responsabilidade pelo maior ataque terrorista da história moderna realizado por eles! Porque eles sempre enfatizam, falsamente, que o maior ataque terrorista da história recente é o ataque às torres gêmeas. Imagine se, na época dos ataques terroristas a Hiroshima e Nagasaki, houvesse a tecnologia de informação que havia em 11 de setembro de 2001, ou que há hoje em dia! Imagine as cenas de horror viralizadas na internet de milhares de vítimas civis de uma hecatombe nuclear em duas cidades atingidas por bombas nucleares em dois dias distintos!

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[1] O historiador grego Xenofonte (430-349 a.C.) relata que os administradores das cidades gregas praticavam terrorismo contra a população de cidades inimigas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Fontes do conhecimento (em construção)



Introdução

De acordo com a definição tradicional de conhecimento (proposicional), conhecimento é crença verdadeira justificada. Gettier mostrou que, mesmo que sejam individualmente necessárias (o que pode ser questionado), essas condições não são conjuntamente suficientes. Mas podemos contornar o problema de Gettier e investigar mais profundamente a natureza das crenças verdadeiras justificadas. 

Crer consiste em tomar uma proposição como verdadeira, o que não deve ser confundido com ser verdadeira. Uma proposição é o conteúdo (significado ou sentido) de uma frase indicativa e o conteúdo de uma crença. Uma mesma frase pode ser ambígua, isto é, pode ter conteúdos distintos em contextos distintos. Em cada um desses contextos ela expressará uma proposição distinta. Por exemplo: a frase "Há muito café sobre a mesa" pode expressar a proposição que há várias garrafas térmicas cheias de café sobre a mesa, ou a proposição que há muitos sacos de café em pó sobre a mesa. Duas frases distintas podem ser sinônimas, isto é, pode ter o mesmo conteúdo, expressar a mesma proposição. Por exemplo: as frases "A neve é branca" e "The snow is white" expressam a mesma proposição. Por isso, dizer "João acredita que a neve é branca" e "John belives that the snow is white" é atribuir a mesma crença a João e John, pois, se essas atribuições de crença são verdadeiras, João e John tomam a mesma proposição como verdadeira, a saber aquela expressa por "A neve é branca" e "The snow is white".

Há muita controvérsia sobre as proposições, sobre se existem e sobre qual é sua natureza. Mas, para o presente propósito, podemos contornar essa controvérsia. 

A justificação é o que quer que garanta, em alguma medida, que a crença é verdadeira com um grau de probabilidade acima da adivinhação sortuda. Aquilo que dá essa garantia é um justificador dessa crença. As fontes do conhecimento são justamente aquilo que pode fornecer os justificadores das crenças. Mas tais fontes também podem fornecer os refutadores de uma crença, ou seja, aquilo que justifica crer na negação da crença.

As proposições podem ser classificadas segundo variados critérios: semânticos, epistêmicos, modais, etc. Convém abordar algumas dessas classificações a fim de tornar mais claras as considerações sobre as fontes do conhecimento, pois há controvérsias sobre a relação entre as fontes do conhecimento e os tipos de proposições classificadas de acordo com esses critérios.


Analítico vs sintético

A primeira classificação é uma classificação semântica, porque diz respeito à estrutura desses conteúdos semânticos que são proposições. Trata-se da distinção, introduzida pela primeira vez por Immanuel Kant (embora por influência do conhecimento de distinções anteriores[1]), entre proposições analíticas e proposições sintéticas. Mas, para entender essa distinção, devemos considerar a natureza dos conceitos complexos e a relação entre eles e os conceitos que compõem seu conteúdo. Conceitos são o conteúdo de termos gerais. Termos gerais são aquelas expressões linguísticas que podem ser predicadas de várias coisas diferentes. Por exemplo: o termo "professor" expressa um conceito, pois pode ser predicado de várias pessoas diferentes, tal como em "João é professor" e "Sócrates é professor". Alguns conceitos são complexos, ou seja, são formado por outros conceitos. Mas alguns conceitos são simples, ou seja, não são formados por outros conceitos. Conceitos simples são indefiníveis, pois uma definição apresenta os conceitos que compõem um conceito complexo. Podemos entender essa relação entre conceitos complexos e aqueles que o compõem por meio de uma analogia com um bolo e suas fatias. Um conceito complexo é como um bolo e suas fatias são como os conceitos que compõem o conceito complexo.

Em algumas proposições da forma sujeito-predicado (embora seja questionável que todas), tanto o sujeito quanto o predicado são constituídos por conceitos, que são expressos por termos gerais. Por exemplo: na frase "A baleia é um mamífero", os termos gerais "baleia" e "mamífero" expressam dois conceitos distintos. Uma proposição é analítica, para Kant, justamente quando o conceito do predicado compõe o, ou, na terminologia de Kant, está contido no, conceito do sujeito. Por exemplo: a definição de solteiro é: ser humano do sexo masculino não-casado. De acordo com isso, na frase "Todo solteiro é não-casado", o predicado expressa um conceito já contido no conteúdo do conceito expresso pelo sujeito. Quando pensamos em solteiros, já os pensamos como não-casados. Quando dizemos deles que são não-casados, dizemos deles algo que já pensamos deles quando os pensamos. De acordo com isso, o que é suficiente para que alguém saiba que uma proposição é analiticamente verdadeira? Devemos saber duas coisas: devemos saber quais conceitos constituem o conteúdo do conceito do sujeito, conhecimento que se obtém por meio de análise ou decomposição lógica do conceito do sujeito, e devemos saber aplicar os princípios lógicos, para verificar se o conteúdo proposicional está em boa ordem lógica. De posse desse conhecimento, podemos saber se o conceito do predicado de uma proposição está contido no conceito do sujeito ou se é logicamente incompatível com algum conceito contido no conceito do sujeito. Por exemplo: de posse do conhecimento do conteúdo do conceito de corpo, posso saber se, na proposição que todo corpo tem um extensão (exemplo de Kant), o conceito de extensão está ou não contido no conceito de corpo, ou se é logicamente incompatível com o conceito de corpo. Se o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito, a proposição é analiticamente verdadeira. Se o conceito do predicado é incompatível com o conceito do sujeito a proposição é analiticamente falsa.

Mas o que acontece se o conceito do predicado nem estiver contido no conceito do sujeito, nem for incompatível com ele? A proposição, nesse caso, é falsa? Não necessariamente. O máximo que podemos concluir com base nesse fato é que não se trata de uma proposição analítica. Ela nem é analiticamente verdadeira, nem é analiticamente falsa. Por exemplo: o conteúdo do conceito de garrafa não é constituído por nenhum conceito de cor, ele não contém qualquer conceito de cor. Por isso, uma garrafa pode ser de qualquer cor ou ser incolor. Portanto, para saber se uma garrafa é vermelha, não basta analisar o conceito do sujeito da proposição "Esta garrafa é vermelha" e aplicar os princípios da lógica para saber se essa proposição é verdadeiras. No caso desse exemplo, devemos olhar para a garrafa, ter uma percepção dela, precisamos da experiência. Proposições desse tipo, cujo predicado não está contido no sujeito, são as proposições sintéticas.


A priori vs a posteriori

As proposições, segundo Kant, também podem ser classificadas, de acordo com um critério epistêmico, como a priori e como a posteriori. Uma proposição a priori é uma que pode ser conhecida como verdadeira ou ser justificadamente acreditada independentemente da experiência. Mas essa independência, como Kant bem chama atenção, pode ser relativa ou absoluta. Imagine que demolidores instalaram explosivos nas fundações de um prédio para demoli-lo. Antes de vermos um prédio desabar e, por tanto, a priori, sabemos que ele irá desabar porque sabemos que demolidores instalaram explosivos em suas fundações e sabemos que quando as fundações de um prédio são solapadas, o prédio desaba. Portanto, independentemente da experiência particular de ver aquele prédio desabando, sabemos que ele (provavelmente) irá desabar. Mas, embora independente dessa experiência particular, esse conhecimento não é independente de qualquer experiência experiência particular. Ele está baseado em observações passadas (de primeira ou segunda mão) de prédios que desabaram em circunstâncias semelhantes. Por isso, o conhecimento de que esse prédio particular irá desabar é a priori relativamente à experiência de ver esse prédio particular desabar. O conhecimento da verdade de uma proposição ou a justificação de uma crença em uma proposição é absolutamente a priori quando é independente de qualquer experiência particular. 

Mas quais seriam os exemplos de proposições a priori? Já vimos um: as proposições analíticas. Parece absurdo dizer que proposições como "Todo solteiro é não-casado" seja conhecida como verdadeira por meio da observação dos solteiros. Parece que quem compreende o conteúdo do termo "solteiro" e sabe aplicar princípios lógicos elementares tem tudo o que é suficiente para saber que essa proposição é verdadeira. A experiência não desempenha nenhum papel na posse desse conhecimento. Outro exemplo muito citado de proposições a priori são as proposições da matemática. Parece absurdo dizer que sabemos que nosso conhecimento de que 35+45=80 ou de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180° é baseado em alguma experiência. Nos departamentos de matemática não existe um laboratório de matemática, onde se fazem observações para se provar ou refutar proposições matemáticas. Outros exemplos frequentemente mencionados de proposições a priori são as proposições da lógica e algumas proposições éticas.[2] 

Alguém poderia perguntar: não é o caso que para aprender matemática, por exemplo, temos de ter experiências, perceber os numerais, as formas geométricas, e isso não tornaria as proposições matemáticas dependentes da experiência? Essa pergunta está baseada em uma confusão entre a aquisição de conceitos e a justificação de proposições. A aquisição de conceitos podem muito bem envolver a experiência, mas disso não se segue que a experiência justifique ou refute as proposições que contém esses conceitos. Temos de aprender a identificar o numeral "5", por exemplo, para pensarmos proposições matemáticas que contém o número cinco. E isso envolve a percepção do numeral e de suas combinações com outras expressões matemáticas. Mas uma vez que adquirimos o número cinco e compreendemos proposições que o contém (345+879=1.224, por exemplo), aquela experiência para adquirí-lo passa a ser inútil para justificar a crença em tais proposições. O que precisamos fazer para justificar nossas crenças em proposições matemáticas é calcular ou provar tais proposições a partir de outras proposições matemáticas já provadas.

Proposições cujo conhecimento ou cuja crença justificada dependem da experiência são as proposições a posteriori ou empíricas. O que se está entendendo aqui por "experiência"? Experiência é toda informação vinda dos nossos sentidos. Os cinco sentidos, visão, audição, tato, olfato e paladar, são sensores que conectam nossos corpos ao meio ambiente, na medida em que são afetados pelo que ocorre no ambiente, essa afecção produz impulsos elétricos que são transportados por meio de nervos até o cérebro e no cérebro tais impulsos são processados de tal forma que o resultado são as sensações e a percepção. As sensações se distinguem por causa das suas qualidades (qualia). Cada sensação tem uma qualidade (quale) diferente. Elas são um dos variados tipos de conteúdo das nossas mentes. A percepção consiste na consciência de alguma coisa exterior à mente por meio das sensações. Essa consciência depende que a mente tome o comportamento das sensações como sendo o reflexo tanto do comportamento dessas coisas exteriores quanto do nosso comportamento em relação a essas coisas exteriores.  Perceber uma pedra por meio da visão, por exemplo, é ter consciência dessa pedra por meio das sensações visuais. 

Apesar de a percepção ser a fonte primária da justificação de proposições empíricas, elas não são a única fonte e tampouco a fonte de toda justificação de crenças em proposições empíricas. A fonte da justificação de crenças sobre o conteúdo da nossa própria mente é tradicionalmente concebida como um análogo da percepção: a introspecção. A principal diferença da introspeção para a percepção é que na introspecção temos consciência direta dos conteúdos da nossa mente, ao passo que na percepção é, na melhor das hipóteses, indireta, via consciência das sensações. Por outro lado, a justificação de crenças sobre o conteúdo de outras mentes é tradicionalmente concebido como sendo uma inferência indutiva por analogia em que se infere uma crença sobre o conteúdo da mente alheia a partir do conhecimento da relação entre os conteúdos da nossa mente, nosso comportamento e o comportamento alheio. A memória também é fonte de justificação de crenças empíricas e é constitutiva da identidade pessoal. O testemunho é outras fonte de justificação de crenças empíricas. Nesse caso, nossas crenças são indiretamente justificada pela percepção, pois são justificadas pela percepção alheia. Por fim, a indução ou inferência indutiva também é uma fonte de justificação de proposições empíricas. Teorias das ciências naturais são geralmente justificadas empiricamente por meio de inferências indutivas, especialmente a abdução


Modalidades aléticas

Os valores de verdade das proposições, a verdade e a falsidade, possuem modos ou modalidades. Essas modalidades chamam-se aléticas porque o termo grego "aletheia" significa o mesmo que "verdade". Uma proposição, além de ser verdadeira, pode ser possivelmente verdadeira, ou necessariamente verdadeira (não pode ser falsa), ou contingentemente verdadeira (se falsa, pode ser verdadeira e se verdadeira, pode ser falsa). Uma proposição, além de ser falsa, pode ser necessariamente falsa (não pode ser verdadeira) ou impossível. Pode-se esclarecer o conteúdo desses termos, embora não defini-los, por meio do conceito de mundo possível. Um mundo possível é tal que a sua descrição não viola nenhum princípio lógico elementar e nenhum princípio metafísico elementar. O mundo atual, o mundo que habitamos, é um dos mundos possíveis, pois, se não fosse possível, não seria atual. Há mundos possíveis que estão muito próximos do mundo atual, ou seja, são iguais ao mundo atual, exceto no que respeita a alguns poucos fatos. Outros mundos possíveis estão muito afastados do atual, ou seja, são muito diferentes do mundo atual. Há infinitos mundos possíveis. Algumas proposições que são falsas no mundo atual são verdadeiras em outras mundos possíveis. As modalidades aléticas podem elucidadas usando-se o conceito de mundo possível da seguinte forma:

Uma proposição é verdadeira quando é verdadeira no mundo atual

Uma proposição é possível quando é verdadeira em ao menos um mundo possível.

Uma proposição é necessária quando é verdadeira em todos as mundos possíveis.

Uma proposição é impossível quando é falsa em todos os mundos possíveis.

Uma proposição é contingente quando é verdadeira em ao menos um mundo possível e falsa em ao menos um mundo possível.[3]

Toda proposição verdadeira, toda proposição necessária e toda proposição contingente é possível, pois é verdadeira em ao menos um mundo possível. Mas nem toda proposição possível é verdadeira, ou necessária, ou contingente.


Controvérsias

Essas três classificações das proposições não são todas excludentes. Questões filosóficas interessantes são sobre se há exemplos de cada uma dessas categorias de proposições e questões sobre se há proposições que pertencem a mais de uma categoria. 

Kant acreditava que todas as proposições analíticas eram a priori e necessárias e que algumas proposições sintéticas são a posteriori, que todas proposições a posteriori são contingentes e que algumas proposições sintéticas são a priori e necessárias. Portanto, todas as proposições a priori são necessárias para Kant. Um exemplo de proposições sintéticas a priori, para Kant, são as proposições da matemática. Aquilo que justifica essas proposições é o que Kant chama de intuição pura, uma espécie de percepção sem sensação, sem conteúdo, uma percepção das formas puras do espaço (proposições da geometria) e do tempo (proposições da aritmética). 

Frege discordava de Kant. Para ele as proposições da aritmética são analíticas. Seu projeto logicista consistia em mostrar que, em última análise, as proposições da aritmética são proposições da lógica. Ele pretendia fazer isso definindo os termos primitivos da aritmética por meio de termos puramente lógicos e deduzindo os axiomas da aritmética de proposições da lógica. 

Kripke também discorda de Kant. Ele acredita que nem toda proposição a posteriori é contingente e que nem toda proposição a priori é necessária. O exemplo de proposição necessária a posteriori de Kripke são as proposições a posteriori de identidade: descobrimos por meio da experiência que João é Joca, por exemplo. Mas se essa proposição for verdadeira, não pode ser falsa, pois isso implicaria que uma pessoa, João, seria distinta de si mesma, Joca. O exemplo de proposição contingente a priori de Kripke é a proposição que diz que o metro padrão de Paris tem um metro quando expressa por que batizou aquela barra como o metro padrão e, assim, criou essa medida. É contingente que aquela barra tinha o comprimento que tinha quando foi batizada de metro padrão. Ela poderia ser mais curta ou mais longa. Mas, uma vez batizada como o metro padrão, aquele que assim a batizou sabe, sem precisar medi-la, a priori, que ela tem um metro de comprimento. 

Alguns filósofos, os empiristas, argumentam que não há proposições a priori, que toda justificação para nossas crenças é obtida, direta ou indiretamente, por meio da experiência. Mill argumentava que as proposições da matemática são generalizações empíricas. Quine  argumentava que nossas crenças formam uma teoria total do mundo que é testada em bloco (holisticamente) na experiência. Ele concebia essa teoria total a partir da metáfora de círculos concêntricos. Nos círculos mais externos, periféricos, estão as proposições mais diretamente justificadas pela experiência, tais como proposições sobre percepções, e nos círculos mais internos estão as proposições mais indiretamente justificadas pela experiência, como as proposições da lógica e da matemática. Elas são as últimas a serem revisadas no confronto dessa teoria total com o mundo, são as mais "entrincheiradas", mas são, para Quine, passíveis de revisão. O que parece ser o caráter necessário dessas proposição é apenas a sua distância da periferia da nossa teoria total do mundo, o seu entrincheiramento.

Nesse ponto cabe uma observação: não podemos confundir a revisabilidade da crença em uma proposição com a sua contingência. Não há nenhuma contradição em se pensar que uma mesma proposição é necessária e a crença nela é revisável. Ou seja, a revisabilidade não implica a contingência. Os gregos se perguntaram se era possível triseccionar um ângulo usando-se apenas régia e compasso, tal como fazemos ao biseccionar um um ângulo. Alguns acreditaram que isso era possível, até que o advento da geometria analítica propiciou a prova de que isso não é possível. Alguém que acreditava que era possível e se depara com essa prova pode revisar essa crença. Se a proposição acreditada era necessariamente falsa, então essa revisão da crença é a mudança de uma crença em uma proposição necessariamente falsa para uma crença em uma proposição necessariamente verdadeira.


Percepção 

A percepção é a fonte primária de justificação de parte das crenças em proposições empíricas. Crenças em proposições empíricas sobre conteúdo da mente de si, o autoconhecimento, podem ser justificadas pela percepção apenas na medida em que a percepção nos fornece justificação para crenças sobre o comportamento e o comportamento o conteúdo da mente. Outra fonte da justificação de crenças do auto-conhecimento é, alegadamente, a introspecção. Mas o que é a percepção? Nossa maneira ordinária e, geralmente, tácita de compreender a natureza da percepção é comumente denominada realismo ingênuo. Trata-se de uma modo ingênuo de compreender a natureza da percepção no sentido de ingenuidade acadêmica. Uma compreensão de um certo fenômeno é academicamente ingênua quando quem a sustenta, explicita ou tacitamente, ignora uma grande tradição de debate problematizador dessa compreensão. Trata-se normalmente de uma compreensão pré-teórica, ou seja, anterior ao esforço de se teorizar sobre o fenômeno. Em breve ficará claro por que essa teoria é chamada de realismo.

Ordinariamente, pensamos a percepção como algo nos fornece um acesso epistêmico, ou abertura, da mente para um mundo independente da mente: o mundo exterior à mente. Sem a percepção, a mente estaria isolada do mundo. Esse acesso se daria por meio da consciência imediata de objetos e fenômenos ordinários, tais como mesas, cadeiras, garrafas, árvores, astros, raios, o vento, etc. Essa consciência se daria por intermédio das informações obtidas por meio dos sentidos. Fisiologicamente, entendemos os os sentidos como sensores do nosso organismo que possuem a capacidade de serem afetados pelo ambiente. Essa afecção produz impulsos elétricos que são transportados por nervos até o cérebro, onde eles são processados e o resultado é a consciência das sensações. Mas quando somos solicitados a descrever nossas percepções, o que fazemos revela que nosso entendimento ordinário da percepção inclui o que se costuma chamar de tese da transparência: nós descrevemos aquilo que está sendo percebido, não como está sendo percebido. Diríamos que estamos vendo tais e tais objetos, com tais e tais formas, de tais e tais cores, etc. Isso é análogo ao que faríamos se nos fosse solicitado que olhássemos uma janela transparente e descrevêssemos o que veswamos: não descreveríamos a janela ou o seu vidro, mas as coisas que estão do outro lado da janela. Dai o termo "transparência". Há situações em que essa transparência é enfraquecida, especialmente quando algum de nossos sentidos não está funcionando bem. Se uma pessoa tem uma visão muito ruim e usa um óculos de grau elevado, então, ao descrever o que vê sem óculos, essa deficiência visual, o modo como as coisas estão sendo percebidas, provavelmente seria considerada.

Quando pensamos sobre algo do mundo exterior ou temos crenças sobre algo do mundo exterior, isso sobre o que pensamos deve existir, caso contrário estaríamos iludidos de que estamos pensando ou tendo uma crença sobre algo do mundo exterior. Mas isso sobre o qual pensamos ou temos uma crença não necessita estar na nossa presença. Diferentemente do pensamento ou da crença, a percepção de um objeto do mundo exterior, segundo o realismo ingênuo, ocorre apenas se o seu objeto estiver presente. Podemos ter pensamentos e crenças sobre objetos que não estão presentes. A percepção ocorre apenas quando o objeto afeta nossos sentido e ele pode fazer isso apenas se estiver presente. Esse objeto não precisa estar próximo, pois, afinal, podemos ver estrelas que estão incrivelmente distantes.[4]

A independência que os objetos ordinários têm da mente, segundo o realismo ingênuo, é de dois tipos: epistêmica e metafísica. Os objetos ordinários são epistemicamente independentes porque eles são como são independentemente de nossas crenças, desejos, receios, preferências. Eles são metafisicamente independentes porque sua existência não depende da nossa existência. Essa independência confere a tais objetos realidade, os apresenta como reais. Dai o termo "realismo".

Em suma, de acordo com o realismo ingênuo, a percepção apresenta o mundo à mente através da consciência de objetos ordinários existentes, independentes da mente e presentes. Essas características da percepção são experimentadas não apenas na percepção verídica, ou seja, na percepção em que a aparência do objeto ordinário o apresenta tal como de fato é, mas também na percepção ilusória e na alucinação, que não é um tipo de percepção. Uma percepção é verídica quando nela o objeto ordinário parece ter uma propriedade que ele de fato tem. Uma percepção é ilusória quando nela o objeto ordinário parece ter uma propriedade que ele de fato não tem. Por exemplo: quando mergulhamos a metade de um bastão reto na água em um ângulo não reto, a parte mergulhada do bastão parece estar em um ângulo diferente do ângulo da parte do bastão que está fora da água e o bastão então parece torto ou quebrado. Uma alucinação perceptual ocorre quando temos sensações que parecem ser causadas por um objeto ordinário, mas na verdade não existe nem nunca existiu nenhum objeto causando-as e, por isso, a alucinação não é um tipo de percepção. Tanto na percepção ilusória quanto na alucinação perceptual nós ordinariamente experimentamos as características da percepção verídica: essas experiências parecem ser a consciência de objetos ordinários existentes, independentes da mente e presentes.

O problema da percepção

Há dois argumentos principais contra o realismo ingênuo que se baseiam justamente na natureza da percepção ilusória e da alucinação perceptual: o argumento da percepção e o argumento da alucinação. Ambos os argumentos procuram mostrar que nós nunca temos consciência de objetos ordinários. Esses são argumentos paradoxais e constituem o assim chamado problema da percepção. Eles são argumentos paradoxais porque suas premissas parecem verdadeiras, parecem válidos, mas sua conclusão parece falsa. Nenhum argumento pode ter essas três propriedades.

A primeira premissa do argumento da ilusão é a definição de percepção ilusória.

1i. Uma experiência é uma percepção ilusória se nela um objeto ordinário parece possuir uma propriedade quando de fato esse objeto não possui essa propriedade.

A segunda premissa é uma espécie de explicação do que é, para um objeto ordinário, parecer ser algo que não é; uma explicação do que é a aparência ilusória do objeto ordinário; uma resposta à pergunta "Como, afinal, um objeto ordinário parece ter uma propriedade que de fato não tem?".

2i. Quando um objeto ordinário parece possuir uma propriedade que não possui temos consciência de algo que de fato possui essa propriedade.

Embora o bastão mergulhado na água seja reto e não torto, aquilo de que temos consciência possui a propriedade de ser torto, pois se fôssemos desenhar o que se apresenta à nossa consciência, o desenharíamos torto e não reto, pois essa é a forma daquilo que está no nosso campo visual. Da mesma forma, se fôssemos desenhar um objeto ordinário que tem a forma de uma circunferência mas é visto de uma perspectiva em que ele parece ter a forma de uma elipse, então desenharíamos algo que possui a forma de uma elipse, pois é disso que temos consciência.

Dessas duas premissas podemos extrair a seguinte conclusão:

3i. Portanto, dado que, em uma percepção ilusória, o objeto ordinário não possui a propriedade que o objeto de que temos consciência possui, o objeto de que temos consciência em uma percepção ilusória nunca é um objeto ordinário.

Um mesmo objeto não pode possuir e não possuir uma determinada propriedade ao mesmo tempo. Portanto, a aparência ilusória de um objeto ordinário é um outro objeto (cuja existência, supostamente, foi causada pelo objeto ordinário) que possui a propriedade que o objeto ordinário não possui. Uma nova premissa é acrescentada ao argumento que generaliza a explicação da natureza do objeto do qual temos consciência na percepção ilusória:

4i. A mesma explicação da natureza do objeto do qual temos consciência na percepção ilusória é verdadeira do objeto do qual temos consciência na percepção verídica.

Não há nenhuma razão para pensar que haja uma diferença na explicação da natureza do objeto do qual temos consciência na percepção ilusória e na percepção verídica, pois a única diferença entre as duas é que, na percepção ilusória, aquilo do qual temos consciência possui uma propriedade que o objeto ordinário não possui e na percepção verídica tanto o objeto do qual temos consciência quanto o objeto ordinário possuem a mesma propriedade. Não há razão para pensar que em um caso eles não sejam o mesmo objeto e no outro eles sejam o mesmo objeto. se a percepção de um objeto ordinário ocorre por meio da consciência de um objeto não ordinário na percepção ilusória, o mesmo corre na percepção verídica. Disso podemos concluir o seguinte:

5i. Portanto, o objeto de que temos consciência em uma percepção verídica nunca é um objeto ordinário.

A próxima premissa apenas exaure as possibilidades de tipos de percepção que podemos ter para permitir a conclusão geral final:

6i. Se está percebendo um objeto ordinário, então ou essa percepção é verídica, ou essa percepção é ilusória.

7i. Portanto, em qualquer percepção, nunca estamos consciente de um objeto ordinário.

Essa conclusão é incompatível com o realismo ingênuo, segundo o qual temos consciência de objetos ordinários na percepção. 

O argumento da alucinação é um pouco mais simples que o argumento da ilusão e isso se deve à diferença entre percepção ilusória e alucinação. Uma alucinação ocorre quando temos uma experiência indistinguível da percepção verídica, mas na qual não há nenhum objeto ordinário sendo percebido. Por exemplo: se no campo visual de uma pessoa aparecerem sensações visuais típicas de quem está vendo um rato, mas não há nem nunca houve nenhum rato sendo percebido, então essa pessoa está alucinando um rato. A primeira premissa do argumento da alucinação é a seguinte:

1a. Em uma alucinação perceptual de um objeto ordinário como possuindo uma determinada propriedade, há consciência de algo, mas não há consciência de um objeto ordinário.

Essa premissa se segue da própria definição de "alucinação". Se temos consciência de algo na alucinação perceptual, então é porque é algo que existe na nossa experiência. Mas se não existe nenhum objeto ordinário sendo percebido na alucinação perceptual, então aquilo de que temos consciência na alucinação perceptual não é um objeto ordinário. A premissa seguinte é um análogo da premissa 4i do argumento da ilusão:

2a. A mesma explicação da natureza do objeto do qual temos consciência na alucinação perceptual é verdadeira do objeto do qual temos consciência na percepção verídica.

A justificação de 2a é análoga à justificação de 4i: se a alucinação perceptual de um objeto ordinário é indistinguível de uma percepção verídica de um objeto ordinário e se na alucinação o objeto de que temos consciência não é um objeto ordinário, então não há razão para pensar que na percepção verídica as coisas são diferentes e, portanto, a mesma explicação da natureza do objeto de que temos consciência é verdadeira tanto da alucinação perceptual, quanto da percepção verídica. Essa premissa não implica que não haja diferença entre alucinação e percepção verídica. Ela significa apenas que essa diferença não reside no modo como ambas são experimentadas. Ambas são experimentadas como a consciência de um objeto não ordinário. De 1a e 2a se segue a seguinte conclusão:

3a. Em uma percepção verídica, nunca estamos consciente de um objeto ordinário.

O resultado desses dois argumentos é que aquilo de que temos consciência na percepção verídica, na percepção ilusória e na alucinação, é a mesma espécie de coisa: os dados dos sentidos, a informação vinda dos sentidos, as sensações estruturadas. Elas constituem as aparências dos objetos ordinários, sejam verídicas, sejam ilusórias, sejam alucinatórias. Esse resultado é base de uma teoria  denominada de fenomenalismo, segundo a qual os objetos ordinários, na verdade, são construções feitas a partir de dados dos sentidos. Essa é uma forma de idealismo, uma teoria metafísica segundo a qual os objetos ordinários têm uma natureza mental. Mas as conclusões desses argumentos não implicam logicamente o fenomenalismo. O realismo indireto é justamente a combinação da conclusão desses dois argumentos com tese que objetos ordinários, independentes da mente e não mentais, são indiretamente percebidos por meio da consciência direta dos dados dos sentidos.

A premissa 2a, assim como a premissa 4i do argumento da ilusão, foram contestadas por muitos filósofos. Disjuntivistas são um grupo de teóricos que negam essas premissas. Eles não negam que, do ponto de vista subjetivo, percepções verídicas e alucinações sejam indistinguíveis. Eles negam que isso se deva ao fato de que em ambos os casos se trate do mesmo tipo de experiência. Para os disjuntivistas, portanto, a experiência de perceber um objeto e de alucinar um objeto não são a mesma espécie de experiência: ou a experiência é uma percepção (verídica ou ilusória), ou a experiência é uma alucinação. Por isso a teoria desses filósofos é denominada disjuntivismo

Uma outra forma de criticar a conclusão desses dois argumentos parte de uma reflexão sobre as relações lógicas entre os conceitos de ser e aparência. Como vimos, uma consequência dessa conclusão é aquilo de que temos consciência na percepção são os dados dos sentidos, que constituem as aparências dos objetos ordinários. Isso implica que o modo como os objetos ordinários parecem é epistemicamente anterior ao modo como as coisas são, como se primeiro aprendêssemos como as coisas parecem ser e depois, se possível, aprendemos como elas são. Mas as coisas fossem assim, deveria ser não apenas possível, mas necessário, que aprendêssemos primeiro como usar frases da forma "a parece ser F" (onde "a" é um termo singular e "F" é um termo geral) e, depois, aprendêssemos a usar frases da forma "a é F". Mas isso é impossível. É exatamente o contrário que é necessário. Quando estamos adquirindo a linguagem na infância, primeiro aprendemos a usar frases da forma "a é F" e somente depois disso somos capazes de aprender a usar frases da forma "a parece ser F". Quando somos enganados pela aparência ilusória das coisas, aprendemos que ela podem parecer ser o que de fato não são. O conceito de aparência é logicamente dependente do conceito de ser.


Indução

As percepções justificam proposições empíricas sobre particulares, tal como "Esta montanha tem o cume nevado". Além disso, as proposições que ela justificam são, em geral, sobre o que presentemente percebemos. Mas há uma maneira de obter justificação, por meio da experiência, de proposições empíricas gerais e de proposições sobre o que ocorreu no passado ou no futuro? A indução é, alegadamente, uma forma de justificação inferencial desses tipos de proposições empíricas. 

A indução se difere da dedução justamente porque todas as induções são dedutivamente inválidas. Uma inferência dedutiva válida é uma na qual é impossível premissas verdadeiras e conclusão falsa. Uma inferência indutiva é tal que é sempre possível que suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão seja falsa. As premissas de uma indução alegadamente justificam a sua conclusão tornando-a mais provável em um grau acima da adivinhação sortuda. As premissas da indução são proposições justificadas por observações perceptuais já feitas e sua conclusão ou é uma proposição sobre o passado, ou uma proposição sobre o futuro ou uma proposição geral. Por exemplo: se todos os gambás fêmeas que observamos possuem marsúpio, então podemos concluir disso que todos os gambás, inclusive aqueles não observados, possuem marsúpio. Mesmo que as premissas dessa inferência sejam todas verdadeiras, a sua conclusão pode ser falsa, embora ela seja, alegadamente, mais provável que uma adivinhação sortuda. Outro exemplo: se todas as vezes que passamos na frente de um portão de uma casa, um cão latiu ara nós, podemos concluir que o cão latirá para nós a próxima vez que passarmos pelo portão. Terceiro exemplo: se todas as observações de incêndios de grandes proporções mostram que eles deixam uma camada de cinza sobre o solo que depois é soterrada e se, em uma investigação geológica em um determinado local, observamos uma camada de cinza soterrada, então podemos concluir que naquele local houve um incêndio.

David Hume formulou um argumento cético contra a indução. Para ele, do ponto de vista epistêmico, há dois tipos de proposições: proposições que descrevem relações entre idéias, que seriam aproximadamente o que Kant chamou de proposições analíticas e as idéias seriam o que Kant chamou de conceitos, e proposições que descrevem fatos. Fatos, nesse caso, são os fatos espaço-temporais. Tais fatos são conhecidos por meio da experiência. Portanto, as proposições que descrevem fatos são empíricas. As proposições que descrevem relações entre idéias são a priori. Hume acredita que induções justificam suas conclusões apenas se um princípio suposto por todas elas for justificado. Segundo esse princípio, que chamarei de princípio da regularidade, a natureza se comporta de modo regular, de tal forma que uma regularidade observada no passado se repetirá nas observações futuras. Esse princípio ou é uma proposição sobre relações entre idéias, e portanto, é justificada a priori, ou é uma proposição sobre um fato e é justificado por meio da experiência. Ela não é uma proposição sobre relações entre idéias. A idéia de regularidade não está contida na idéia de natureza. Não há nenhuma contradição em se pensar que uma regularidade observada não se repetirá na próxima observação. Logo, esse princípio não pode ser justificado a priori. Só resta examinar se esse princípio é uma proposição sobre um fato e, portanto, é justificado por meio da experiência. Ocorre que ele é uma generalização sobre a natureza e, se for justificado por meio da experiência, deve ser justificado por meio de uma indução. Mas se tentarmos justificar esse princípio por meio de uma indução, então essa justificação é uma inferência circular. Uma inferência circular é uma que ou contém a conclusão entre as suas premissas ou ao menos uma de suas premissas é supõe a verdade da conclusão. O problema de uma inferência circular é que, embora válida, ela não justifica a sua conclusão, justamente por ser circular.[5] Exemplo: Deus existe porque é isso que está dito na Bíblia e o que é dito na Bíblia é verdadeiro porque ela foi escrita com inspiração divina. A conclusão que Deus existe, nessa inferência, é justificada por uma proposição que supõe que Deus existe. Analogamente, ao tentar justificar o princípio da regularidade por meio de uma indução, estaremos tentando justificar por meio de uma indução um princípio que é suposto por toda indução, inclusive essa que se apresenta como justificação daquele princípio. Portanto, essa indução supõem a verdade do princípio que está tentando justificar. Disso se segue que não podemos mostrar, por meio da experiência, que as induções justificam suas conclusões. Logo, não podemos mostrar de modo algum que as induções justificam suas conclusões. Essa conclusão torna o argumento de Hume paradoxal e, portanto, um problema. Parece difícil de aceitar que, em última análise, nossas proposições empíricas não sejam justificadas pela indução. Hume apresenta uma solução cética para esse problema. Uma solução cética é aquela que parte da aceitação do argumento cético, mas procura dissipar o nosso desconforto com a sua conclusão. A solução de Hume consiste em dizer que nossas induções como produto do hábito de esperar que as regularidades percebidas se repitam. Sendo assim, embora não haja razões teóricas para acreditar que as induções justifiquem suas conclusões, temos razões pragmáticas para seguir fazendo induções: suas conclusões estão de acordo com a nossa prática de fazer induções que se baseiam na percepção de regularidades. Qualquer outra alternativa a elas seria pura especulação arbitrária. Mas essa solução cética de Hume é geralmente criticada por confundir a questão sobre a justificação da indução com a questão sobre a origem da indução.

Alguns filósofos acreditam que, embora seja circular, a circularidade da indução que visa justificar o princípio da regularidade não é viciosa. A indução seria uma circularidade viciosa apenas se a sua conclusão figurasse entre suas premissas, de forma implícita ou explícita. Mas o princípio da regularidade não é uma premissa da indução e sim uma espécie de regra de inferência. Exigir que uma regra de inferência figure como premissa de uma inferência do qual ela é regra implica o paradoxo de Lewis Carroll: cada vez que adicionamos uma regra de inferência à inferência, geramos uma nova inferência cuja regra deve ser adicionada à inferência, e assim por diante, ad infinitum. Isso implicaria que toda inferência tem infinitas premissas e que, portanto, nenhuma inferência poderia ser finalizada. Todavia, essa defesa da justificação da indução pela indução (uma meta-indução) seria bem sucedida apenas se a aceitação dessa justificação não dependesse de uma aceitação prévia de sua conclusão, não importando o quão ilegítimo seja exigir que essa conclusão figure como premissa dessa inferência. E a aceitação dessa justificação de fato depende de uma aceitação prévia de sua conclusão.

Um outro problema relacionado à indução surge quando pensamos a relação entre as premissas de uma indução e sua conclusão como tendo uma natureza puramente formal. Esse problema chama-se paradoxo dos corvos. Se o que confirma uma tese geral, e, portanto, justifica essa tese, são suas instâncias, então o que justifica sua contrapositiva também justifica a tese, pois essa contrapositiva é logicamente equivalente à tese. Por exemplo: as instâncias de "Todo corvo é preto" são "Esse corvo é preto", "Aquele corvo é preto", etc.; a contrapositiva dessa tese é "Tudo que não é preto não é corvo"; uma instância dessa última tese é "Essa maçã é verde", pois, essa maçã verde não é preta e não é um corvo; portanto, o fato que essa maçã é verde confirma a tese que todos os corvos são pretos. Mas isso parece completamente contra-intuitivo. Como o fato de que uma maçã é verde poderia justificar a tese que todo corvo é preto? O que maçãs verdes têm a ver com a cor dos corvos?

Nelson Goodman acredita que o problema de Hume, que ele chama de velho enigma da indução, pode ser dissolvido, embora um novo problema surja depois disso, que ele chama de novo enigma da indução. A dissolução desse problema ocorre quando se faz uma analogia entre a justificação da indução e a justificação da dedução. A dedução é justificada por meio de um equilíbrio entre as regras para uma dedução válida e nossa prática dedutiva, a prática de aceitar deduções como válidas e de rejeitar deduções como inválidas. Se uma regra para dedução permite que façamos inferências que nossa prática dedutiva rejeita, então rejeitamos essa regra. Por outro lado, rejeitamos deduções feitas em desacordo com regras de dedução bem estabelecidas. Segundo Goodman, o mesmo se aplica às regras da indução e à prática indutiva. Hume não teria confundido a questão sobre a justificação da indução com uma questão sobre sua gênese. Ele teria pensado que a questão sobre a justificação da indução somente seria entendida corretamente em conexão com a questão sobre sua gênese. Mas Goodman acredita que dissolver o problema de Hume não resolve todos os problemas. É necessário determinar as regras para uma boa indução tão precisamente quanto possível, tal como são determinadas as regras para uma boa dedução. Hempel teria iniciado esse trabalho primeiramente formulado a tarefa em termos da relação de confirmação entre as instâncias confirmadoras de uma tese e essa tese. Como vimos, o projeto de Hempel enfrenta o paradoxo dos corvos. Mas mesmo que esse paradoxo seja solucionado por meio de critérios de relevância daquilo que é uma instância confirmadora de uma tese, Goodman apresenta seu novo enigma da indução como um problema residual. Esse problema mostraria a nossa dificuldade de se diferenciar generalizações arbitrárias e generalizações legaliformes (que tenham o caráter de leis). 

Para formular seu enigma, Goodman introduz dois conceitos peculiares: o conceito de verdul (grue) é o conceito de azuerde (bleen).

x é verdul = x é observado antes do tempo t e é verde ou x é observado depois de t e é azul.

Agora consideremos as seguintes teses:

(1) Todas as esmeraldas são verdes.

(2) Todas as esmeraldas são verduis.

Essas teses são incompatíveis, ou seja, não é possível que sejam ambas verdadeiras. Todavia, todas as observações feitas até t que confirmam a tese (1) confirmam também a tese (2). Portanto, essas observações também confirmam as seguintes previsões:

(p1) A próxima esmeralda observada depois de t será verde.

(p2) A próxima esmeralda observada depois de t é verdul.

Uma esmeralda verde observada depois de t é verde, mas uma esmeralda verdul observada depois de t é azul. Entretanto, ambas as previsões são igualmente confirmadas pelas observações feitas antes de t.

Esse problema mostra que a escolha de predicados é importante para se fazer induções aceitáveis. Embora (p2) seja confirmada pelas observações anteriores a t, essa não é uma indução aceitável, pois (p2) é uma tese que contém um predicado definido arbitrariamente, envolvendo uma posição temporal aparentemente ilegítima. Predicados a serem usados em induções não podem ter posições temporais ou espaciais e devem ser puramente qualitativo. Todavia, argumenta Goodman, essa posicionalidade do predicado "grue" é relativa à linguagem com que se faz induções. Para ver isso, consideremos a seguinte definição

x é azuerde = x é observado antes de t e é azul ou x não é observado e é verde 

Se os predicados primitivos da nossa linguagem fossem "verdul" e "azuerde", então os predicados "verde" e "azul" seriam posicionais.

x é verde = x é observado antes de t e é verdul ou x não é observado e é azuerde.

x é azul = x é observado antes de t e é azuerde ou x não é observado e é verdul.

Não podemos rejeitar "verdul" e "azuerde" devido a sua posicionalidade porque isso implicaria rejeitar "verde" e "azul" devido a sua posicionalidade caso "verdul" e "azuerde" fossem nossos predicados primitivos. Sendo assim, parece não haver nenhum critério semântico ou sintático para diferenciar os predicados projetáveis, ou seja, úteis para se fazer induções, dos não-projetáveis.


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[1] Leibniz distinguia proposições que são verdades de razão (a priori) de proposições que são verdades de fato (a posteriori) e Hume distinguia proposições que descreviam relações entre idéias (a priori) e proposições que descreviam fatos (matters of fact).

[2] Veremos que há filósofos empiristas que argumentam contra a existência de proposições a priori. Veremos também o que significa ser empirista.

[3] Para uma exposição mais detalhada da elucidação das modalidades aléticas a partir do conceito de mundo possível, ver essa postagem.

[4] Mas aqui há um problema relacionado a esse caso. Algumas estrelas que são vistas no céu à noite de fato não existem mais. O que vemos é a luz que elas emitiram quando ainda existiam e que viajou uma distância colossal até atingir nossos olhos. Parece que percebemos essas estrelas, pois a visão dessas estrelas se dá como a visão de objetos próximos, sendo a única diferença o fato que a luz emitida pela estrela demora muito mais tempo para atingir nossos olhos que a luz emitida ou refletida por objetos próximos. Mas em que sentido um objeto que não existe mais está presente? Parece que o melhor seria dizer que a percepção não exige a presença do que é percebido, mas que aquilo que é percebido afete os nossos sentidos. A diferença entre esse caso e as percepções de objetos próximos, no que tange a como a percepção ocorre, é apenas de grau. A luz que objetos próximos refletem ou emitem leva tão pouco tempo para atingir nossos olhos que parece não levar tempo algum. Um caso intermediário seria o do Sol. Sua luz leva oito minutos para chegar à Terra e, portanto, aos nossos olhos. Por isso, quando vemos o pôr-do-sol no seu último minuto, o Sol, na verdade, já está abaixo do horizonte há sete minutos.

[5] A inferência "P; logo P" é válida, pois é impossível que sua premissa seja verdadeira e sua conclusão seja falsa, pois a premissa e a conclusão são a mesma proposição. Mas uma proposição não pode justificar inferencialmente a si mesma.